quarta-feira, 26 de setembro de 2007

Os desastres de Sofia (Clarice Lispector)


Qualquer que tivesse sido o seu trabalho anterior, ele o abandonara, mudara de pro­fissão, e passara pesadamente a ensinar no curso primário: era tudo o que sabíamos dele. O professor era gordo, grande e silencioso, de ombros contraídos. Em vez de nó na garganta, tinha ombros contraídos. Usava paletó curto demais, óculos sem aro, com um fio de ouro encimando o nariz grosso e romano. E eu era atraída por ele. Não amor, mas atraída pelo seu silêncio e pela controlada impaciência que ele tinha em nos ensinar e que, ofendida, eu adivinhara. Passei a me comportar mal na sala. Falava muito alto, mexia com os colegas, inter­rompia a lição com piadinhas, até que ele dizia, vermelho:
— Cale-se ou expulso a senhora da sala.
Ferida, triunfante, eu respondia em desafio: pode me mandar! Ele não mandava, senão estaria me obedecendo. Mas eu o exasperava tanto que se tornara doloroso para mim ser o objeto do ódio daquele homem que de certo modo eu amava. Não o amava como a mulher que eu seria um dia, amava-o como uma criança que tenta desastradamente proteger um adulto, com a cólera de quem ainda não foi covarde e vê um homem forte de ombros tão curvos. Ele me irritava. De noite, antes de dormir, ele me irritava.
Eu tinha nove anos e pouco, dura idade como o talo não quebrado de uma begônia. Eu o espicaçava, e ao conseguir exacerbá-lo sentia na boca, em glória de martírio, a acidez insuportá­vel da begônia quando ê esmagada entre os dentes; e roia as unhas, exultante. De manhã, ao atravessar os portões da escola, pura como ia com meu café com leite e a cara lavada, era um choque deparar em carne e osso com o homem que me fizera devanear por um abismal minuto antes de dormir. Em superfície de tempo fora um minuto apenas, mas em profundidade eram velhos séculos de escuríssima doçura. De manhã — como se eu não tivesse contado com a exis­tência real daquele que desencadeara meus negros sonhos de amor — de manhã, diante do homem grande com seu paletó curto, em choque eu era jogada na vergonha, na perplexidade e na assustadora esperança. A esperança era o meu pecado maior.
Cada dia renovava-se a mesquinha luta que eu encetara pela salvação daquele homem. Eu queria o seu bem, e em resposta ele me odiava. Contundida, eu me tornara o seu demônio e tormento, símbolo do inferno que devia ser para ele ensinar aquela turma risonha de desin­te­ressa­­dos. Tornara-se um prazer já terrível o de não deixá-lo em paz. O jogo, como sem­pre, me fascinava. Sem saber que eu obedecia a velhas tradições, mas com uma sabedoria com que os ruins já nascem — aqueles ruins que roem as unhas de espanto —, sem saber que obede­cia a uma das coisas que mais acontecem no mundo, eu estava sendo a prostituta e ele o santo. Não, talvez não seja isso. As palavras me antecedem e ultrapassam, elas me tentam e me modi­ficam, e se não tomo cuidado será tarde demais: as coisas serão ditas sem eu as ter dito. Ou, pelo menos, não era apenas isso. Meu enleio vem de que um tapete é feito de tantos fios que não posso me resignar a seguir um fio só; meu enredamento vem de que uma história é feita de muitas histórias. E nem todas posso contar — uma palavra mais verdadeira poderia de eco em eco fazer desabar pelo despenhadeiro as minhas altas geleiras. Assim, pois, não falarei mais no sorvedouro que havia em mim enquanto eu devaneava antes de adormecer. Senão eu mesma terminarei pensando que era apenas essa macia voragem o que me impelia para ele, esquecendo minha desesperada abnegação. Eu me tornara a sua sedutora, dever que ninguém me impusera. Era de se lamentar que tivesse caído em minhas mãos erradas a tarefa de salvá-lo pela tentação, pois de todos os adultos e crianças daquele tempo eu era provavelmente a menos indicada. “Essa não é flor que se cheire”, como dizia nossa empregada. Mas era como se, sozinha com um alpinista paralisado pelo terror do precipício, eu, por mais inábil que fosse, não pudesse senão tentar ajudá-lo a descer. O professor tivera a falta de sorte de ter sido logo a mais imprudente quem ficara sozinha com ele nos seus ermos. Por mais arriscado que fosse o meu lado, eu era obrigada a arrastá-lo para o meu lado, pois o dele era mortal. Era o que eu fazia, como uma criança importuna puxa um grande pela aba do paletó. Ele não olhava para trás, não perguntava o que eu queria, e livrava-se de mim com um safanão. Eu continuava a puxá-lo pelo paletó, meu único instrumento era a insistência. E disso tudo ele só percebia que eu lhe rasgava os bolsos. É verdade que nem eu mesma sabia ao certo o que fazia, minha vida com o professor era invisível. Mas eu sentia que meu papel era ruim e perigoso: impelia-me a voracidade por uma vida, vida real que tardava, e pior que inábil, eu também tinha gosto em lhe rasgar os bolsos. Só Deus perdoaria o que eu era porque só Ele sabia do que me fizera e para o quê. Eu me deixava, pois, ser matéria d'Ele. Ser matéria de Deus era a minha única bondade. E a fonte de um nascente misticismo. Não misticismo por Ele, mas pela matéria d'Ele, mas pela vida crua e cheia de prazeres: eu era uma adoradora. Aceitava a vastidão do que eu não conhecia e a ela me confiava toda, com segredos de confessionário. Seria para as escuridões da ignorância que eu seduzia o professor? e com o ardor de uma freira na cela. Freira alegre e monstruosa, ai de mim. E nem disso eu poderia me vangloriar: na classe todos nós éramos igualmente monstruosos e suaves, ávida matéria de Deus.
Mas se me comoviam seus gordos ombros contraídos e seu paletozinho apertado, minhas gargalhadas só conseguiam fazer com que ele, fingindo a que custo me esquecer, mais contraído ficasse de tanto autocontrole. A antipatia que esse homem sentia por mim era tão forte que eu me detestava. Até que meus risos foram definitivamente substituindo minha delicadeza impossível.
Aprender eu não aprendia naquelas aulas. O jogo de torná-lo infeliz já me tomara demais. Suportando com desenvolta amargura as minhas pernas compridas e os sapatos sempre cambaios, humilhada por não ser uma flor, e sobretudo torturada por uma infância enorme que eu temia nunca chegar a um fim — mais infeliz eu o tornava e sacudia com altivez a minha única riqueza: os cabelos escorridos que eu planejava ficarem um dia bonitos com permanente e que por conta do futuro eu já exercitava sacudindo-os. Estudar eu não estudava, confiava na minha vadiação sempre bem sucedida e que também ela o professor tomava como mais uma provocação da menina odiosa. Nisso ele não tinha razão. A verdade é que não me sobrava tempo para estudar. As alegrias me ocupavam, ficar atenta me tomava dias e dias; havia os livros de história que eu lia roendo de paixão as unhas até o sabugo, nos meus primeiros êxtases de tristeza, refinamento que eu já descobrira; havia meninos que eu escolhera e que não me haviam escolhido, eu perdia horas de sofrimento porque eles eram inatingíveis, e mais outras horas de sofrimento aceitando-os com ternura, pois o homem era o meu rei da Criação; havia a esperançosa ameaça do pecado, eu me ocupava com medo em esperar; sem falar que estava permanentemente ocupada em querer e não querer ser o que eu era, não me decidia por qual de mim, toda eu é que não podia; ter nascido era cheio de erros a corrigir. Não, não era para irritar o professor que eu não estudava; só tinha tempo de crescer. O que eu fazia para todos os lados, com uma falta de graça que mais parecia o resultado de um erro de cálculo: as pernas não combinavam com os olhos, e a boca era emocionada enquanto as mãos se esgalhavam sujas — na minha pressa eu crescia sem saber para onde. O fato de um retrato da época me revelar, ao contrário, uma menina bem plantada, selvagem e suave, com olhos pensativos embaixo da franja pesada, esse retrato real não me desmente, só faz é revelar uma fantasmagórica estranha que eu não compreenderia se fosse a sua mãe. Só muito depois, tendo finalmente me organizado em corpo e sentindo-me fundamentalmente mais garantida, pude me aventurar e estudar um pouco; antes, porém, eu não podia me arriscar a aprender, não queria me disturbar — tomava intuitivo cuidado com o que eu era, já que eu não sabia o que era, e com vaidade cultivava a integridade da ignorância. Foi pena o professor não ter chegado a ver aquilo em que quatro anos depois inesperadamente eu me tornaria: aos treze anos, de mãos limpas, banho tomado, toda composta e bonitinha, ele me teria visto como um cromo de Natal à varanda de um sobrado. Mas, em vez dele, passara embaixo um ex-amiguinho meu, gritara alto o meu nome, sem perce­ber que eu já não era mais um moleque e sim uma jovem digna cujo nome não pode mais ser berrado pelas calçadas de uma cidade. “Que é?”, indaguei do intruso com a maior frieza. Recebi então como resposta gritada a notícia de que o professor morrera naquela madrugada. E branca, de olhos muito abertos, eu olhara a rua vertiginosa a meus pés. Minha compostura quebrada como a de uma boneca partida.
Voltando a quatro anos atrás. Foi talvez por tudo o que contei, misturado e em conjunto, que escrevi a composição que o professor mandara, ponto de desenlace dessa história e começo de outras. Ou foi apenas por pressa de acabar de qualquer modo o dever para poder brincar no parque.
— Vou contar uma história, disse ele, e vocês façam a composição. Mas usando as pala­vras de vocês. Quem for acabando não precisa esperar pela sineta, já pode ir para o recreio.
O que ele contou: um homem muito pobre sonhara que descobrira um tesouro e ficara muito rico; acordando, arrumara sua trouxa, saíra em busca do tesouro; andara o mundo inteiro e continuava sem achar o tesouro; cansado, voltara para a sua pobre, pobre casinha; e como não tinha o que comer, começara a plantar no seu pobre quintal; tanto plantara, tanto colhera, tanto começara a vender que terminara ficando muito rico.
Ouvi com ar de desprezo, ostensivamente brincando com o lápis, como se quisesse deixar claro que suas histórias não me ludibriavam e que eu bem sabia quem ele era. Ele contara sem olhar uma só vez para mim. É que na falta de jeito de amá-lo e no gosto de persegui-lo, eu também o acossava com o olhar: a tudo o que ele dizia eu respondia com um simples olhar direto, do qual ninguém em sã consciência poderia me acusar. Era um olhar que eu tornava bem límpido e angélico, muito aberto, como o da candidez olhando o crime. E conseguia sempre o mesmo resultado: com perturbação ele evitava meus olhos, começando a gaguejar. O que me enchia de um poder que me amaldiçoava. E de piedade. O que por sua vez me irritava. Irritava-me que ele obrigasse uma porcaria de criança a compreender um homem.
Eram quase dez horas da manhã, em breve soaria a sineta do recreio. Aquele meu colégio, alugado dentro de um dos parques da cidade, tinha o maior campo de recreio que já vi. Era tão bonito para mim como seria para um esquilo ou um cavalo. Tinha árvores espalhadas, longas descidas e subidas e estendida relva. Não acabava nunca. Tudo ali era longe e grande, feito para pernas compridas de menina, com lugar para montes de tijolo e madeira de origem ignorada, para moitas de azedas begônias que nós comíamos, para sol e sombras onde as abe­lhas faziam mel. Lá cabia um ar livre imenso. E tudo fora vivido por nós: já tínhamos rolado de cada declive, intensamente cochichado atrás de cada monte de tijolo, comido de várias flores e em todos os troncos havíamos a canivete gravado datas, doces nomes feios e corações transpassados por flechas; meninos e meninas ali faziam o seu mel.
Eu estava no fim da composição e o cheiro das sombras escondidas já me chamava. Apressei-me. Como eu só sabia “usar minhas próprias palavras”, escrever era simples. Apres­sava-me também o desejo de ser a primeira a atravessar a sala — o professor terminara por me isolar em quarentena na última carteira — e entregar-lhe insolente a composição, demonstran­do-lhe assim minha rapidez, qualidade que me parecia essencial para se viver e que, eu tinha certeza, o professor só podia admirar.
Entreguei-lhe o caderno e ele o recebeu sem ao menos me olhar. Melindrada, sem um elogio pela minha velocidade, saí pulando para o grande parque.
A história que eu transcrevera em minhas próprias palavras era igual à que ele contara. Só que naquela época eu estava começando a “tirar a moral das histórias”, o que, se me santifi­cava, mais tarde ameaçaria sufocar-me em rigidez. Com alguma faceirice, pois, havia acrescen­tado as frases finais. Frases que horas depois eu lia e relia para ver o que nelas haveria de tão poderoso a ponto de enfim ter provocado o homem de um modo como eu própria não conse­guira até então. Provavelmente o que o professor quisera deixar implícito na sua história triste é que o trabalho árduo era o único modo de se chegar a ter fortuna. Mas levianamente eu concluíra pela moral oposta: alguma coisa sobre o tesouro que se disfarça, que está onde menos se espera, que é só descobrir, acho que falei em sujos quintais com tesouros. Já não me lembro, não sei se foi exatamente isso. Não consigo imaginar com que palavras de criança teria eu exposto um sentimento simples mas que se torna pensamento complicado. Suponho que, arbi­trariamente contrariando o sentido real da história, eu de algum modo já me prometia por escrito que o ócio, mais que o trabalho, me daria as grandes recompensas gratuitas, as únicas a que eu aspirava. É possível também que já então meu tema de vida fosse a irrazoável esperança, e que eu já tivesse iniciado a minha grande obstinação: eu daria tudo o que era meu por nada, mas queria que tudo me fosse dado por nada. Ao contrário do trabalhador da história, na composição eu sacudia dos ombros todos os deveres e dela saía livre e pobre, e com um tesouro na mão.
Fui para o recreio, onde fiquei sozinha com o prêmio inútil de ter sido a primeira, cis­cando a terra, esperando impaciente pelos meninos que pouco a pouco começaram a surgir da sala.
No meio das violentas brincadeiras resolvi buscar na minha carteira não me lembro o quê, para mostrar ao caseiro do parque, meu amigo e protetor. Toda molhada de suor, vermelha de uma felicidade irrepresável que se fosse em casa me valeria uns tapas — voei em direção à sala de aula, atravessei-a correndo, e tão estabanada que não vi o professor a folhear os cadernos empilhados sobre a mesa. Já tendo na mão a coisa que eu fora buscar, e iniciando outra corrida de volta — só então meu olhar tropeçou no homem.
Sozinho à cátedra: ele me olhava.
Era a primeira vez que estávamos frente a frente, por nossa conta. Ele me olhava. Meus passos, de vagarosos, quase cessaram.
Pela primeira vez eu estava só com ele, sem o apoio cochichado da classe, sem a admiração que minha afoiteza provocava. Tentei sorrir, sentindo que o sangue me sumia do rosto. Uma gota de suor correu-me pela testa. Ele me olhava. O olhar era uma pata macia e pesada sobre mim. Mas se a pata era suave, tolhia-me toda como a de um gato que sem pressa prende o rabo do rato. A gota de suor foi descendo pelo nariz e pela boca, dividindo ao meio o meu sorriso. Apenas isso: sem uma expressão no olhar, ele me olhava. Comecei a costear a parede de olhos baixos, prendendo-me toda a meu sorriso, único traço de um rosto que já perdera os contornos. Nunca havia percebido como era comprida a sala de aula; só agora, ao lento passo do medo, eu via o seu tamanho real. Nem a minha falta de tempo me deixara perceber até então como eram austeras e altas as paredes; e duras, eu sentia a parede dura na palma da mão. Num pesadelo, do qual sorrir fazia parte, eu mal acreditava poder alcançar o âmbito da porta — de onde eu correria, ah como correria! a me refugiar no meio de meus iguais, as crianças. Além de me concentrar no sorriso, meu zelo minucioso era o de não fazer barulho com os pés, e assim eu aderia à natureza íntima de um perigo do qual tudo o mais eu desco­nhecia. Foi num arrepio que me adivinhei de repente como num espelho: uma coisa úmida se encostando à parede, avançando devagar na ponta dos pés, e com um sorriso cada vez mais intenso. Meu sorriso cristalizara a sala em silêncio, e mesmo os ruídos que vinham do parque escorriam pelo lado de fora do silêncio. Cheguei finalmente à porta, e o coração imprudente pôs-se a bater alto demais sob o risco de acordar o gigantesco mundo que dormia.
Foi quando ouvi meu nome.
De súbito pregada ao chão, com a boca seca, ali fiquei de costas para ele sem coragem de me voltar. A brisa que vinha pela porta acabou de secar o suor do corpo. Virei-me devagar, contendo dentro dos punhos cerrados o impulso de correr.
Ao som de meu nome a sala se desipnotizara.
E bem devagar vi o professor todo inteiro. Bem devagar vi que o professor era muito grande e muito feio, e que ele era o homem de minha vida. O novo e grande medo. Pequena, sonâmbula, sozinha, diante daquilo a que a minha fatal liberdade finalmente me levara. Meu sorriso, tudo o que sobrara de um rosto, também se apagara. Eu era dois pés endurecidos no chão e um coração que de tão vazio parecia morrer de sede. Ali fiquei, fora do alcance do homem. Meu coração morria de sede, sim: Meu coração morria de sede.
Calmo como antes de friamente matar ele disse:
— Chegue mais perto . . .
Como é que um homem se vingava?
Eu ia receber de volta em pleno rosto a bola de mundo que eu mesma lhe jogara e que nem por isso me era conhecida. Ia receber de volta uma realidade que não teria existido se eu não a tivesse temerariamente adivinhado e assim lhe dado vida. Até que ponto aquele homem, monte de compacta tristeza, era também monte de fúria? Mas meu passado era agora tarde demais. Um arrependimento estóico manteve erecta a minha cabeça. Pela primeira vez a ignorância, que até então fora o meu grande guia, desamparava-me. Meu pai estava no trabalho, minha mãe morrera há meses. Eu era o único eu.
— ... Pegue o seu caderno ..., acrescentou ele.
A surpresa me fez subitamente olhá-lo. Era só isso, então!? O alívio inesperado foi quase mais chocante que o meu susto anterior. Avancei um passo, estendi a mão gaguejante.
Mas o professor ficou imóvel e não entregou o caderno.
Para a minha súbita tortura, sem me desfitar, foi tirando lentamente os óculos. E olhou-me com olhos nus que tinham muitos cílios. Eu nunca tinha visto seus olhos que, com as inúme­ras pestanas, pareciam duas baratas doces. Ele me olhava. E eu não soube como existir na frente de um homem. Disfarcei olhando o teto, o chão, as paredes, e mantinha a mão ainda estendida porque não sabia como recolhê-la. Ele me olhava manso, curioso, com os olhos despenteados como se tivesse acordado. Iria ele me amassar com mão inesperada? Ou exigir que eu me ajoelhasse e pedisse perdão. Meu fio de esperança era que ele não soubesse o que eu lhe tinha feito, assim como eu mesma já não sabia, na verdade eu nunca soubera.
— Como é que lhe veio a idéia do tesouro que se disfarça?
— Que tesouro? — murmurei atoleimada.
Ficamos nos fitando em silêncio.
— Ah, o tesouro!, precipitei-me de repente mesmo sem entender, ansiosa por admitir qualquer falta, implorando-lhe que meu castigo consistisse apenas em sofrer para sempre de culpa, que a tortura eterna fosse a minha punição, mas nunca essa vida desconhecida.
— O tesouro que está escondido onde menos se espera. Que é só descobrir. Quem lhe disse isso?
O homem enlouqueceu, pensei, pois que tinha a ver o tesouro com aquilo tudo? Atônita, sem compreender, e caminhando de inesperado a inesperado, pressenti no entanto um terreno menos perigoso. Nas minhas corridas eu aprendera a me levantar das quedas mesmo quando mancava, e me refiz logo: “foi a composição do tesouro! esse então deve ter sido o meu erro!” Fraca, e embora pisando cuidadosa na nova e escorregadia segurança, eu no entanto já me levantara o bastante da minha queda para poder sacudir, numa imitação da antiga arrogância, a futura cabeleira ondulada:
— Ninguém, ora ..., respondi mancando. Eu mesma inventei, disse trêmula, mas já recomeçando a cintilar.
Se eu ficara aliviada por ter alguma coisa enfim concreta com que lidar, começava no entanto a me dar conta de algo muito pior. A súbita falta de raiva nele. Olhei-o intrigada, de viés. E aos poucos desconfiadíssima. Sua falta de raiva começara a me amedrontar, tinha ameaças novas que eu não compreendia. Aquele olhar que não me desfitava — e sem cólera ... Perplexa, e a troco de nada, eu perdia o meu inimigo e sustento. Olhei-o surpreendida. Que é que ele queria de mim? Ele me constrangia. E seu olhar sem raiva passara a me importunar mais do que a brutalidade que eu temera. Um medo pequeno, todo frio e suado, foi me tomando. Devagar, para ele não perceber, recuei as costas até encontrar atrás delas a parede, e depois a cabeça recuou até não ter mais para onde ir. Daquela parede onde eu me engastara toda, furtivamente olhei-o.
E meu estômago se encheu de uma água de náusea. Não sei contar.
Eu era uma menina muito curiosa e, para a minha palidez, eu vi. Eriçada, prestes a vomitar, embora até hoje não saiba ao certo o que vi. Mas sei que vi. Vi tão fundo quanto numa boca, de chofre eu via o abismo do mundo. Aquilo que eu via era anônimo como uma barriga aberta para uma operação de intestinos. Vi uma coisa se fazendo na sua cara — o mal-estar já petrificado subia com esforço até a sua pele, vi a careta vagarosamente hesitando e quebrando uma crosta — mas essa coisa que em muda catástrofe se desenraizava, essa coisa ainda se parecia tão pouco com um sorriso como se um fígado ou um pé tentassem sorrir, não sei. O que vi, vi tão de perto que não sei o que vi. Como se meu olho curioso se tivesse colado ao buraco da fechadura e em choque deparasse do outro lado com outro olho colado me olhando. Eu vi dentro de um olho. O que era tão incompreensível como um olho. Um olho aberto com sua gelatina móvel. Com suas lágrimas orgânicas. Por si mesmo o olho chora, por si mesmo o olho ri. Até que o esforço do homem foi se completando todo atento, e em vitória infantil ele mostrou, pérola arrancada da barriga aberta — que estava sorrindo. Eu vi um homem com entranhas sorrindo. Via sua apreensão extrema em não errar, sua aplicação de aluno lento, a falta de jeito como se de súbito ele se tivesse tornado canhoto. Sem entender, eu sabia que pediam de mim que eu recebesse a entrega dele e de sua barriga aberta, e que eu recebesse o seu peso de homem. Minhas costas forçaram desesperadamente a parede, recuei — era cedo demais para eu ver tanto. Era cedo demais para eu ver como nasce a vida. Vida nascendo era tão mais sangrento do que morrer. Morrer é ininterrupto. Mas ver matéria inerte lentamente tentar se erguer como um grande morto-vivo ... Ver a esperança me aterrorizava, ver a vida me embrulhava o estôma­go. Estavam pedindo demais de minha coragem só porque eu era corajosa, pediam minha força só porque eu era forte. “Mas e eu?”, gritei dez anos depois por motivos de amor perdido, “quem virá jamais à minha fraqueza!” Eu o olhava surpreendida, e para sempre não soube o que vi, o que eu vira poderia cegar os curiosos.
Então ele disse, usando pela primeira vez o sorriso que aprendera:
— Sua composição do tesouro está tão bonita. O tesouro que é só descobrir. Você ... — ele nada acrescentou por um momento. Perscrutou-me suave, indiscreto, tão meu íntimo como se ele fosse o meu coração. — Você é uma menina muito engraçada, disse afinal.
Foi a primeira vergonha real de minha vida. Abaixei os olhos, sem poder sustentar o olhar indefeso daquele homem a quem eu enganara.
Sim, minha impressão era a de que, apesar de sua raiva, ele de algum modo havia con­fiado em mim, e que então eu o enganara com a lorota do tesouro. Naquele tempo eu pensava que tudo o que se inventa é mentira, e somente a consciência atormentada do pecado me redimia do vício. Abaixei os olhos com vergonha. Preferia sua cólera antiga, que me ajudara na minha luta contra mim mesma, pois coroava de insucesso os meus métodos e talvez terminasse um dia me corrigindo: eu não queria era esse agradecimento que não só era a minha pior punição, por eu não merecê-lo, como vinha encorajar minha vida errada que eu tanto temia, viver errado me atraía. Eu bem quis lhe avisar que não se acha tesouro à toa. Mas, olhando-o, desanimei: faltava-me a coragem de desiludi-lo. Eu já me habituara a proteger a alegria dos outros, as de meu pai, por exemplo, que era mais desprevenido que eu. Mas como me foi difícil engolir a seco essa alegria que tão irresponsavelmente eu causara! Ele parecia um mendigo que agradecesse o prato de comida sem perceber que lhe haviam dado carne estragada. O sangue me subira ao rosto, agora tão quente que pensei estar com os olhos injetados, enquanto ele, provavelmente em novo engano, devia pensar que eu corara de prazer ao elogio. Naquela mesma noite aquilo tudo se transformaria em incoercível crise de vômitos que manteria acesas todas as luzes de minha casa.
— Você — repetiu então ele lentamente como se aos poucos estivesse admitindo com encantamento o que lhe viera por acaso à boca —, você é uma menina muito engraçada, sabe? Você é uma doidinha ..., disse usando outra vez o sorriso como um menino que dorme com os sapatos novos. Ele nem ao menos sabia que ficava feio quando sorria. Confiante, deixava-me ver a sua feiúra, que era a sua parte mais inocente.
Tive que engolir como pude a ofensa que ele me fazia ao acreditar em mim, tive que engolir a piedade por ele, a vergonha por mim, “tolo!”, pudesse eu lhe gritar, “essa história de tesouro disfarçado foi inventada, é coisa só para menina!” Eu tinha muita consciência de ser uma criança, o que explicava todos os meus graves defeitos, e pusera tanta fé em um dia crescer — e aquele homem grande se deixara enganar por uma menina safadinha. Ele matava em mim pela primeira vez a minha fé nos adultos: também ele, um homem, acreditava como eu nas grandes mentiras ...
... E de repente, com o coração batendo de desilusão, não suportei um instante mais — sem ter pegado o caderno corri para o parque, a mão na boca como se me tivessem quebrado os dentes. Com a mão na boca, horrorizada, eu corria, corria para nunca parar, a prece profunda não é aquela que pede, a prece mais profunda é a que não pede mais — eu corria, eu corria muito espantada.
Na minha impureza eu havia depositado a esperança de redenção nos adultos. A necessidade de acreditar na minha bondade futura fazia com que eu venerasse os grandes, que eu fizera à minha imagem, mas a uma imagem de mim enfim purificada pela penitência do crescimento, enfim liberta da alma suja de menina. E tudo isso o professor agora destruía, e destruía meu amor por ele e por mim. Minha salvação seria impossível: aquele homem também era eu. Meu amargo ídolo que caíra ingenuamente nas artimanhas de uma criança confusa e sem candura, e que se deixara docilmente guiar pela minha diabólica inocência ... Com a mão apertando a boca, eu corria pela poeira do parque.
Quando enfim me dei conta de estar bem longe da órbita do professor, sofreei exausta a corrida, e quase a cair encostei-me em todo o meu peso no tronco de uma árvore, respirando alto, respirando. Ali fiquei ofegante e de olhos fechados, sentindo na boca o amargo empoeirado do tronco, os dedos mecanicamente passando e repassando pelo duro entalhe de um coração com flecha. E de repente, apertando os olhos fechados, gemi entendendo um pouco mais: estaria ele querendo dizer que ... que eu era um tesouro disfarçado? O tesouro onde menos se espera... Oh não, não, coitadinho dele, coitado daquele rei da Criação, de tal modo precisara ... de quê? de que precisara ele? ... que até eu me transformara em tesouro.
Eu ainda tinha muito mais corrida dentro de mim, forcei a garganta seca a recuperar o fôlego, e empurrando com raiva o tronco da árvore recomecei a correr em direção ao fim do mundo.
Mas ainda não divisara o fim sombreado do parque, e meus passos foram se tornando mais vagarosos, excessivamente cansados. Eu não podia mais. Talvez por cansaço, mas eu su­cumbia. Eram passos cada vez mais lentos e a folhagem das árvores se balançava lenta. Eram passos um pouco deslumbrados. Em hesitação fui parando, as árvores rodavam altas. É que uma doçura toda estranha fatigava meu coração. Intimidada, eu hesitava. Estava sozinha na relva, mal em pé, sem nenhum apoio, a mão no peito cansado como a de uma virgem anunciada. E de cansaço abaixando àquela suavidade primeira uma cabeça finalmente humilde que de muito longe talvez lembrasse a de uma mulher. A copa das árvores se balançava para a frente, para trás. “Você é uma menina muito engraçada, você é uma doidinha”, dissera ele. Era como um amor.
Não, eu não era engraçada. Sem nem ao menos saber, eu era muito séria. Não, eu não era doidinha, a realidade era o meu destino, e era o que em mim doía nos outros. E, por Deus, eu não era um tesouro. Mas se eu antes já havia descoberto em mim todo o ávido veneno com que se nasce e com que se rói a vida — só naquele instante de mel e flores descobria de que modo eu curava: quem me amasse, assim eu teria curado quem sofresse de mim. Eu era a escura ignorância com suas fomes e risos, com as pequenas mortes alimentando a minha vida inevitá­vel — que podia eu fazer? eu já sabia que eu era inevitável. Mas se eu não prestava, eu fora tudo o que aquele homem tivera naquele momento. Pelo menos uma vez ele teria que amar, e sem ser a ninguém — através de alguém. E só eu estivera ali. Se bem que esta fosse a sua única vantagem: tendo apenas a mim, e obrigado a iniciar-se amando o ruim, ele começara pelo que poucos chegavam a alcançar. Seria fácil demais querer o limpo; inalcançável pelo amor era o feio, amar o impuro era a nossa mais profunda nostalgia. Através de mim, a difícil de se amar, ele recebera, com grande caridade por si mesmo, aquilo de que somos feitos. Entendi eu tudo isso? Não. E não sei o que na hora entendi. Mas assim como por um instante no professor eu vira com aterrorizado fascínio o mundo — e mesmo agora ainda não sei o que vi, só que para sempre e em um segundo eu vi — assim eu nos entendi, e nunca saberei o que entendi. Nunca saberei o que eu entendo. O que quer que eu tenha entendido no parque foi, com um choque de doçura, entendido pela minha ignorância. Ignorância que ali em pé — numa solidão sem dor, não menor que a das árvores — eu recuperava inteira, a ignorância e a sua verdade incom­preensível. Ali estava eu, a menina esperta demais, e eis que tudo o que em mim não prestava servia a Deus e aos homens. Tudo o que em mim não prestava era o meu tesouro.
Como uma virgem anunciada, sim. Por ele me ter permitido que eu o fizesse enfim sorrir, por isso ele me anunciara. Ele acabara de me transformar em mais do que o rei da Criação: fizera de mim a mulher do rei da Criação. Pois logo a mim, tão cheia de garras e sonhos, coubera arrancar de seu coração a flecha farpada. De chofre explicava-se para que eu nascera com mão dura, e para que eu nascera sem nojo da dor. Para que te servem essas unhas longas? Para te arranhar de morte e para arrancar os teus espinhos mortais, responde o lobo do homem. Para que te serve essa cruel boca de fome? Para te morder e para soprar a fim de que eu não te doa demais, meu amor, já que tenho que te doer, eu sou o lobo inevitável pois a vida me foi dada. Para que te servem essas mãos que ardem e prendem? Para ficarmos de mãos dadas, pois preciso tanto, tanto, tanto — uivaram os lobos, e olharam intimidados as próprias garras antes de se aconchegarem um no outro para amar e dormir.
... E foi assim que no grande parque do colégio lentamente comecei a aprender a ser amada, suportando o sacrifício de não merecer, apenas para suavizar a dor de quem não ama. Não, esse foi somente um dos motivos. É que os outros fazem outras histórias. Em algumas foi de meu coração que outras garras cheias de duro amor arrancaram a flecha farpada, e sem nojo de meu grito.


Lispector, Clarice. Os desastres de Sofia. In A Legião Estrangeira.
São Paulo, Ática, 1977, p. 11-25

Uma amizade sincera (Clarice Lispector)


Não é que fôssemos amigos de longa data. Conhecemo-nos apenas no último ano da escola. Desde esse momento estávamos juntos a qualquer hora. Há tanto tempo precisávamos de uma amigo que nada havia que não confiássemos um ao outro. Chegamos a um ponto de amizade que não podíamos mais guardar um pensamento: um telefonava logo ao outro, marcando encontro imediato. Depois da conversa, sentíamo-nos tão contentes como se nos ti­vés­se­mos presenteado a nós mesmos. Esse estado de comunicação contínua chegou a tal exal­tação que, no dia em que nada tínhamos a nos confiar, procurávamos com alguma aflição um assunto. Só que o assunto havia de ser grave, pois em qualquer um não caberia a veemência de uma sinceridade pela primeira vez experimentada.
Já nesse tempo apareceram os primeiros sinais de perturbação entre nós. Às vezes um telefonava, encontrávamo-nos, e nada tínhamos a nos dizer. Éramos muito jovens e não sabía­mos ficar calados. De início, quando começou a faltar assunto, tentamos comentar as pessoas. Mas bem sabíamos que já estávamos adulterando o núcleo da amizade. Tentar falar sobre nossas mútuas namoradas também estava fora de cogitação, pois um homem não falava de seu amores. Experimentávamos ficar calados — mas tornávamo-nos inquietos logo depois de nos separar­mos.
Minha solidão, na volta de tais encontros, era grande e árida. Cheguei a ler livros apenas para poder falar deles. Mas uma amizade sincera queria a sinceridade mais pura. À procura desta, eu começava a me sentir vazio. Nossos encontros eram cada vez mais decepcionantes. Minha sincera pobreza revelava-se aos poucos. Também ele, eu sabia, chegara ao impasse de si mesmo.
Foi quando, tendo minha família se mudado para São Paulo, e ele morando sozinho, pois sua família era do Piauí, foi quando o convidei a morar em nosso apartamento, que ficara sob a minha guarda. Que rebuliço de alma. Radiantes, arrumávamos nossos livros e discos, pre­pa­rá­va­mos um ambiente perfeito para a amizade. Depois de tudo pronto — eis-nos dentro de casa, de braços abanando, mudos, cheios apenas de amizade.
Queríamos tanto salvar o outro. Amizade é matéria de salvação.
Mas todos os problemas já tinham sido tocados, todas as possibilidades estudadas. Tínhamos apenas essa coisa que havíamos procurado sedentos até então e enfim encontrado: uma amizade sincera. Único modo, sabíamos, e com que amargor sabíamos, de sair da solidão que um espírito tem no corpo.
Mas como se nos revelava sintética a amizade. Como se quiséssemos espalhar em longo discurso um truísmo que uma palavra esgotaria. Nossa amizade era tão insolúvel como a soma de dois números: inútil querer desenvolver para mais de um momento a certeza de que dois e três são cinco.
Tentamos organizar algumas farras no apartamento, mas não só os vizinhos reclamaram como não adiantou.
Se ao menos pudéssemos prestar favores um ao outro. Mas nem havia oportunidade, nem acreditávamos em provas de uma amizade que delas não precisava. O mais que podíamos fazer era o que fazíamos: saber que éramos amigos. O que não bastava para encher os dias, sobretudo as longas férias.
Data dessas férias o começo da verdadeira aflição.
Ele, a quem eu nada podia dar senão minha sinceridade, ele passou a ser uma acusação de minha pobreza. Além do mais, a solidão de um ao lado do outro, ouvindo música ou lendo, era muito maior do que quando estávamos sozinhos. E, mais que maior, incômoda. Não havia paz. Indo depois cada um para seu quarto, com alívio nem nos olhávamos.
É verdade que houve uma pausa no curso das coisas, uma trégua que nos deu mais esperanças do que em realidade caberia. Foi quando meu amigo teve uma pequena questão com a Prefeitura. Não é que fosse grave, mas nós a tornamos para melhor usá-la. Porque então já tínhamos caído na facilidade de prestar favores. Andei entusiasmado pelos escritórios de co­nhe­ci­dos de minha família, arranjando pistolões para meu amigo. E quando começou a fase de selar papéis, corri por toda a cidade — posso dizer em consciência que não houve firma que se reconhecesse sem ser através de minha mão.
Nessa época encontrávamo-nos de noite em casa, exaustos e animados: contávamos as façanhas do dia, planejávamos os ataques seguintes. Não aprofundávamos muito o que estava sucedendo, bastava que tudo isso tivesse o cunho da amizade. Pensei compreender por que os noivos se presenteiam, por que o marido faz questão de dar conforto à esposa, e esta prepara-lhe afanada o alimento, por que a mãe exagera nos cuidados ao filho. Foi, aliás, nesse período que, com algum sacrifício, dei um pequeno broche de ouro àquela que é hoje minha mulher. Só muito depois eu ia compreender que estar também é dar.
Encerrada a questão com a Prefeitura — seja dito de passagem, com vitória nossa — continuamos um ao lado do outro, sem encontrar aquela palavra que cederia a alma. Cederia a alma? mas afinal de contas quem queria ceder a alma? Ora essa.
Afinal o que queríamos? Nada. Estávamos fatigados, desiludidos.
A pretexto de férias com minha família, separamo-nos. Aliás ele também ia ao Piauí. Um aperto de mão comovido foi o nosso adeus no aeroporto. Sabíamos que não nos veríamos mais, senão por acaso. Mais que isso: que não queríamos nos rever. E sabíamos também que éramos amigos. Amigos sinceros.


Lispector, Clarice. Uma Amizade Sincera. In FelicidadeClandestina. Rio de Janeiro, Rocco, 1998

Hora Absurda ( Fernando Pessoa- 04/07/1913)

O TEU SILÊNCIO é uma nau com todas as velas pandas...
Brandas, as brisas brincam nas flâmulas, teu sorriso...
E o teu sorriso no teu silêncio é as escadas e as andas
Com que me finjo mais alto e ao pé de qualquer paraíso...
Meu coração é uma ânfora que cai e que se parte...
O teu silêncio recolhe-o e guarda-o, partido, a um canto...
Minha idéia de ti é um cadáver que o mar traz à praia..., e entanto
Tu és a tela irreal em que erro em cor a minha arte...
Abre todas as portas e que o vento varra a idéia
Que temos de que um fumo perfuma de ócio os salões...
Minha alma é uma caverna enchida p'la maré cheia,
E a minha idéia de te sonhar uma caravana de histriões...
Chove ouro baço, mas não no lá-fora... É em mim... Sou a Hora,
E a Hora é de assombros e toda ela escombros dela...
Na minha atenção há uma viúva pobre que nunca chora...
No meu céu interior nunca houve uma única estrela...
Hoje o céu é pesado como a idéia de nunca chegar a um porto...
A chuva miúda é vazia... A Hora sabe a ter sido...
Não haver qualquer coisa como leitos para as naus!... Absorto
Em se alhear de si, teu olhar é uma praga sem sentido...
Todas as minhas horas são feitas de jaspe negro,
Minhas ânsias todas talhadas num mármore que não há,
Não é alegria nem dor esta dor com que me alegro,
E a minha bondade inversa não é nem boa nem má...

Os feixes dos lictores abriram-se à beira dos caminhos...
Os pendões das vitórias medievais nem chegaram às cruzadas...
Puseram in-fólios úteis entre as pedras das barricadas...
E a erva cresceu nas vias férreas com viços daninhos...
¡Ah, como esta hora é velha!... E todas as naus partiram!
Na praia só um cabo morto e uns restos de vela falam
De Longe, das horas do Sul, de onde os nossos sonhos tiram
Aquela angústia de sonhar mais que até para si calam...
O palácio está en ruínas ... Dói ver no parque o abandono
Da fonte sem repuxo... Ninguém ergue o olhar da estrada
E sente saudades de si ante aquele lugar-outono...
Esta paisagem é um manuscrito com a frase mais bela cortada.
A doida partiu todos os candelabros glabros,
Sujou de humano o lago com cartas rasgadas, muitas...
E a minha alma é aquela luz que não mais haverá nos
candelabros...
E que querem ao lago aziago minhas ânsias, brisas fortuitas?...
¿Por que me aflijo e me enfermo?... Deitam-se nuas ao luar
Todas as ninfas... Veio o sol e já tinham partido...
O teu silêncio que me embala é a ideia de naufragar,
E a ideia de a tua voz soar a lira dum Apolo fingido...
Já não há caudas de pavões todas olhos nos jardins de outrora.
As próprias sombras estão mais tristes... Ainda
Há rastros de vestes de aias (parece) no chão, e ainda chora
Um como que eco de passos pela alameda que eis finda...

Todos os ocasos fundiram-se na minha alma...
As relvas de todos os prados foram frescas sob meus pés frios...
Secou em teu olhar a idéia de te julgares calma,
E eu ver isso em ti é um porto sem navios...
Ergueram-se a un tempo todos os remos... Pelo ouro das searas
Passou uma saudade de não serem o mar... Em frente
Ao meu trono de alheamento há gestos com pedras raras...
Minha alma é uma lâmpada que se apagou e ainda está quente...
Ah, e o teu silêncio é um perfil de píncaro ao sol!
Todas as princesas sentiram o seio oprimido...
Da última janela do castelo só um girassol
Se vê, e o sonhar que há outros põe brumas no nosso sentido...
Sermos, e não sermos mais!... Ó leões nascidos na jaula!...
Repique de sinos para além, no Outro Vale... Perto?...
Arde o colégio e uma criança ficou fechada na aula...
Por que não há de ser o Norte o Sul?... O que está descoberto?..
E eu deliro... De repente pauso no que penso... Fito-te
E o teu silêncio é uma cegueira minha... Fito-te e sonho...
Há coisas rubras e cobras no modo como medito-te,
E a tua idéia sabe à lembrança de um sabor de medonho...
Para que não ter por ti desprezo? Por que não perdê-lo?...
Ah, deixa que eu te ignore... O teu silêncio é um leque-
Um leque fechado, um leque que aberto seria tão belo, tão belo,
Mas mais belo é não o abrir, para que a Hora não peque...
Gelaram todas as mãos cruzadas sobre todos os peitos...
Murcharam mais flores do que as que havia no jardim...

O meu amar-te é uma catedral de silêncios eleitos,
E os meus sonhos uma escada sem princípio mas com fim...
Alguém vai entrar pela porta... Sente-se o ar sorrir...
Tecedeiras viúvas gozan as mortalhas de virgens que tecem...
Ah, o teu tédio é uma estátua de uma mulher que há de vir,
O perfume que os crisântemos teriam, se o tivessem...
E preciso destruir o propósito de todas as pontes,
Vestir de alheamento as paisagens de todas as terras,
Endireitar à força a curva dos horizontes,
E gemer por ter de viver, como um ruído brusco de serras...
Há tão pouca gente que ame as paisagens que não existem!...
Saber que continuará a haver o mesmo mundo amanhã — como
nos desalegra!...
Que o meu ouvir o teu silêncio não seja nuvens que atristem
O teu sorriso, anjo exilado, e o teu tédio, auréola negra...
Suave, como ter mãe e irmãs, a tarde rica desce...
Não chove já, e o vasto céu é um grande sorriso imperfeito...
A minha consciência de ter consciência de ti é uma prece,
E o meu saber-te a sorrir é uma flor murcha a meu peito...
Ah, se fôssemos duas figuras num longínquo vitral!...
Ah, se fôssemos as duas cores de uma bandeira de glória!...
Estátua acéfala posta a um canto, poeirenta pia batismal,
Pendão de vencidos tendo escrito ao centro este lema - Vitória!
O que é que me tortura?... Se até a tua face calma
Só me enche de tédios e de ópios de ócios medonhos...
Não sei... Eu sou um doido que estranha a sua própria alma...
Eu fui amado em efígie num país para além dos sonhos...

Poema para Lili (Fernando Pessoa)

No comboio descendente
Vinha tudo à gargalhada,
Uns por verem rir os outros
E os outros sem ser por nada –
No comboio descendente
De Queluz à Cruz Quebrada...

No comboio descendente
Vinham todos à janela,
Uns calados para os outros
E os outros a dar-lhes trela –
No comboio descendente
Da Cruz Quebrada a Palmela...

No comboio descendente
Mas que grande reinação!
Uns dormindo, outros com sono,
E os outros nem sim nem não –
No comboio descendente
De Palmela a Portimão ...


Fernando Pessoa, Obra Poética e em Prosa, ed. António Quadros. Porto, Lello & Irmão, 1986.

Liberdade (Fernando pessoa)

Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura.

O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa...
Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor, quando há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...



16-03-1935

Publicado in Seara Nova, n.º 526, de 11.09.1937

Elegia na Sombra (Fernando Pessoa)

Lenta, a raça esmorece, e a alegria
É como uma memoria de outrem. Passa
Um vento frio na nossa nostalgia
E a nostalgia torna-se desgraça.

Pesa em nós o passado e o futuro.
Dorme em nós o presente. E a sonhar
A alma encontra sempre o mesmo muro,
E encontra o mesmo muro ao dispertar.

Quem nos roubou a alma? Que bruxedo
De que magia incognita e suprema
Nos enche as almas de dolencia e medo
Nesta hora inutil, apagada e extrema?

Os heroes resplandecem a distancia
Num passado impossivel de se ver
Com os olhos da fé ou os da ancia.
Lembramos nevoa, sombras a esquecer.

Que crime outrora feito, que peccado
Nos impoz esta esteril provação
Que é indistinctamente nosso fado
Como o pressente nosso coração?

Que victoria maligna conseguimos –
Em que guerra, com que armas, com que armada? –
Que assim o seu castigo irreal sentimos
Collado aos ossos d'esta carne errada?

Terra tam linda com heroes tam grandes,
Bom sol universal localizado
Pelo melhor calor que aqui expandes,
Calor suave e azul só a nós dado –

Tanta belleza dada e gloria ida!
Tanta esperança que, depois da gloria,
Só conheceu que é facil a descida
Das encostas anonymas da historia!

Tanto, tanto! Que é feito de quem foi?
Ninguem volta? Do mundo subterraneo
Onde a sombria luz por nulla doe,
Pesando sobre onde já esteve o craneo,

Não restitue Plutão a sob o ceu
Um heroe ou o animo que o faz,
Como Eurydice dada á dor de Orpheu;
Ou restituiu, e olhámos para traz?

Nada. Nem fé nem lei, nem mar nem porto.
Só a prolixa estagnação das maguas,
Como nas tardes baças, no mar morto,
A dolorosa solidão das aguas.

Povo sem nexo, raça sem supporte,
Que, agitada, indecisa, nem repare
Em que é raça, e que aguarda a propria morte
Como a um comboio expresso que aqui pare.

Torvelinho de duvidas, descrença
Da propria conciencia de se a ter,
Nada ha em nós que, firme e crente, vença
Nossa impossibilidade de querer.

Plagiarios da sombra e do abandono,
Registramos, quietos e vazios,
Os sonhos que ha antes que venha o somno
E o somno inutil que nos deixa frios.

Oh, que ha de ser de nós? Raça que foi
Como que um novo sol occidental
Que houve por typo o aventureiro e o heroe
E outrora teve nome Portugal...

(Falla mais baixo! Deixa a tarde ser
Ao menos uma externa quietação
Que por ser fóra faça menos doer
Nosso descompassado coração.

Falla mais baixo! Somos sem remedio,
Salvo se do ermo abysmo onde Deus dorme
Nos venha dispertar do nosso tedio
Qualquer obscuro sentimento informe.

Silencio quasi! Nada digas! Cala
A esperança vazia em que te acho,
Patria. Que doença de teu ser se exhala?
Tu nem sabes dormir. Falla mais baixo!)

Ó incerta manhã de nevoeiro
Em que o Rei morto vivo tornará
Ao povo ignobil e o fará inteiro –
És qualquer coisa que Deus quer ou dá?

Quando é a tua Hora e o teu Exemplo?
Quando é que vens, do fundo do que é dado,
Cumprir teu rito, reabrir teu Templo
Vendando os olhos lucidos do Fado?

Quando é que sôa, no deserto de alma
Que Portugal é hoje, seu sentir,
Tua voz, como um balouçar de palma
Ao pé do oasis do que possa vir?

Quando é que esta tristeza desconforme
Verá, desfeita a tua cerração,
Surgir um vulto, no nevoeiro informe,
Que nos faça sentir o coração?

Quando? Estagnamos. A melancholia
Das horas successivas que a alma tem
Enche de tedio a noite, e chega o dia
E o tedio augmenta porque o dia vem.

Patria, quem te feriu e envenenou?
Quem, com suave e maligno fingimento
Teu coração supposto socegou
Com abundante e inutil alimento?

Quem fez que durmas mais do que dormias?
Que fez que jazas mais que até aqui?
Aperto as tuas mãos: como estão frias!
Mãe do meu ser que te ama, que é de ti?

Vives, sim, vives porque não morreste...
Mas a vida que vives é um somno
Em que indistinctamente o teu ser veste
Todos os sambenitos do abandono.

Dorme, ao menos, de vez. O Desejado
Talvez não seja mais que um sonho louco
De quem, por muito te ter, Patria, amado,
Acha que todo o amor por ti é pouco.

Dorme, que eu durmo, só de te saber
Presa da inquietação que não tem nome
E nem revolta ou ansia sabe ter
Nem da esperança sente sede ou fome.

Dorme, e a teus pés teus filhos, nós que o somos,
Colheremos, inuteis e cansados
O agasalho do amor que ainda pomos
Em ter teus pés gloriosos por amados.

Dorme, mãe Patria, nulla e postergada,
E, se um sonho de esperança te surgir,
Não creias nelle, porque tudo é nada,
E nunca vem aquillo que ha de vir.

Dorme, que a tarde é finda e a noite vem.
Dorme, que as palpebras do mundo incerto
Baixam solemnes, com a dor que têm,
Sobre o mortiço olhar inda disperto.

Dorme, que tudo cessa, e tu com tudo,
Quererias viver eternamente,
Ficção eterna ante este espaço mudo
Que é um vacuo azul? Dorme, que nada sente,

Nem paira mais no ar, que fora almo
Se não fora a nossa alma erma e vazia,
Que o nosso fado, vento frio e calmo
E a tarde de nós mesmos, calma e fria –

Como - longinquo sopro altivo e humano! –
Essa tarde monotona e serena
Em que, ao morrer, o imperador romano
Disse: Fui tudo, nada vale a pena.

2-6-1935


Edição Crítica de Fernando Pessoa - Volume I. Edição de Luís Prista. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2000.

Fernando Pessoa- ( Acerca de Salazar e do salazarismo)

Este senhor Salazar
É feito de sal e azar.
Se um dia chove,
A agua dissolve
O sal,
E sob o céu
Fica só azar, é natural.

Oh, c'os diabos!
Parece que já choveu...

____________________________
Coitadinho
Do tiraninho!
Não bebe vinho.
Nem sequer sozinho...

Bebe a verdade
E a liberdade,
E com tal agrado
Que já começam
A escassear no mercado.

Coitadinho
Do tiraninho!
O meu vizinho
Está na Guiné,
E o meu padrinho
No Limoeiro
Aqui ao pé,
Mas ninguém sabe porquê.

Mas, enfim, é
Certo e certeiro
Que isto consola
E nos dá fé:
Que o coitadinho
Do tiraninho
Não bebe vinho,
Nem até
Café.

29-03-1935
______________________________
Á Emissora Nacional

Fernando Pessoa



Para a gente se entreter
E não haver mais chatice
Queiram dar nos o prazer
De umas vezes nos dizer
O que Salazar não disse.

Transmittem a toda a hora,
Nas entrelinhas das danças,
"Salazar disse" Emissora
E ahi vem essa senhora
A Estada Nova com tranças.

Sim, talvez seja o melhor,
Porque estes homens de estado
Quando fallam, é o peor,
E então quando são do teor
Do chatazar já citado!



Primavera de 1935
______________________________

Emoção e Poesia- Fernando Pessoa


Quem quer que seja de algum modo um poeta sabe muito bem quão mais fácil é escrever um bom poema (se os bons poemas se acham ao alcance do homem) a respeito de uma mulher que lhe interessa muito do que a respeito de uma mulher pela qual está profundamente apaixonado. A melhor espécie de poema de amor é, em geral, escrita a respeito de uma mulher abstrata.
Uma grande emoção é por demais egoísta; absorve em si própria todo o sangue do espírito, e a congestão deixa as mãos demasiado frias para escrever. Três espécies de emoções produzem grande poesia - emoções fortes e profundas ao serem lembradas muito tempo depois; e emoções falsas, isto é, emoções sentidas no intelecto. Não a insinceridade, mas sim, uma sinceridade traduzida, é a base de toda a arte.
O grande general que pretende ganhar uma batalha para o império de seu país e para a história de seu povo não deseja - não pode desejar ter muitos de seus soldados assassinados (mortos). Contudo, uma vez que tenha penetrado na contemplação de sua estratégia, escolherá (sem um pensamento para seus homens) o golpe melhor, embora o faça perder cem mil homens, em vez da estratégia pior, ou mesmo a mais lenta, que lhe pode deixar nove décimos daqueles homens com quem e por quem luta, e a quem, em geral, ama.
Torna-se um artista por amor a seus compatriotas, e expõe-nos à carnificina por causa de sua
estratégia.

quarta-feira, 19 de setembro de 2007

Estudo para um conto ( Sérgio Sant'Anna)

"Haverá uma mulher deitada. Caída sobre uma cama. Talvez bêbada, ou drogada. Sua respiração, quase imperceptível, às vezes é atravessada por um longo suspiro, um sobressalto.A cortina esvoaça. O corpo da mulher, no quarto escuro, torna-se visível e invisível de acordo com o agitar-se da leve cortina. Há um anúncio luminoso no velho prédio em frente. Mostra um par bailando, como bonecos mecânicos, ao ritmo sincopado das luzes. A todo instante acende-se o letreiro: Acadêmico, Dancing. A vírgula é um rabinho saltitante.Tudo se apaga por uma fração de segundo, a intervalos regulares.Ao se ver novamente a mulher, ela terá alterado sua posição na cama. Descobrem-se meias com ligas. A porta do armário está aberta. Contornos de vestidos.Misturam-se, no luminoso, as cores azul, vermelha, amarela, verde, fazendo reverberar a pele pálida da mulher. Ela nunca toma sol. Haverá uma cicatriz em seu rosto.Supõe-se, evidentemente, que a mulher terá alguma relação com o Acadêmico, Dancing. Talvez tenha vindo de lá, há pouco. Deve ser uma dançarina profissional. Dessas que dançam com os fregueses, saem com eles.De vez em quando poderá dizer, como se nem ela própria acreditasse:– Vou juntar dinheiro para uma operação plástica.O rufião que a 'protege' dará de ombros ao ouvir isso.Não se sabe a proveniência dessa cicatriz. Ou melhor, não se sabe se isso será revelado. De boa coisa não virá, claro.De qualquer modo, a cicatriz será um elemento essencial dentro dessa composição. Existe um outro homem, mais velho, sempre de terno, que costuma vir dançar com a mulher e pede a ela para não remover a cicatriz. É justamente isso que...Ela ri, gosta de ser objeto desse tipo de desejo e antes simulava orgasmos. Ele pediu que ela parasse com isso. Gosta mesmo é da pele branca contrastando com os pêlos pubianos, o reflexo nela das luzes, o azulado, o vermelho, a cicatriz.Há um aquário no quarto, também recebendo aquela luminosidade intermitente. Como será a vida interior de um peixe? Quem alimenta esses peixes? Na verdade não importa, eles são adereços vivos dentro de um ambiente frívolo, com uma penteadeira velha sobre a qual estão largados cosméticos, uma caixinha de couro com jóias de fantasia.Mas quem vê a mulher dessa posição, no interior do quarto, de frente para a janela e a cama? Os peixes? Também não importa, é como um quadro encerrado à noite numa galeria ou museu.Haverá também um plano inferior nesse quadro, nessa mulher. Não que ela esteja desenvolvendo um processo de associação de idéias. São antes imagens ou percepções que logo se desfazem, anestesiadas. Alguma memória recende de uma outra mulher, uma colega, que injeta nessa mulher do conto, com uma agulha, o conteúdo de uma seringa, no banheiro de damas do Acadêmico, Dancing. Depois a outra a acaricia nos seios e entre as coxas. Depois há pancadas fortes na porta do banheiro. E o rufião a terá arrastado até o quarto, onde lhe deu duas bofetadas, ela sendo jogada – ou se jogando – sobre a cama. A cama com uma coberta cor-de-rosa.A mulher ali, esperando mais. Porradas ou outra coisa. Mas não. Ele saiu, batendo a porta. Talvez volte mais tarde. Ou nunca. Poderá dar ou levar um tiro nessa mesma noite. Ou apenas irá dormir com outra, não se sabe.A porta do quarto não foi trancada, a mulher permanece assim, com sua cicatriz, suas ligas nas coxas brancas recebendo as cores do luminoso, desarmada. Como se ele, o rufião, ou qualquer outro, pudesse entrar a qualquer momento e possuí-la. Pode-se fazer dela o que se quiser.Sons, ruídos da rua, noite de sexta ou sábado. De repente, se poderá ouvir passos na escada. De sapatos de salto alto, uns. Outros de homem, na madeira que range. Passos que penetram de algum modo na consciência da mulher deitada. Penetram também no quarto ao lado, separado por uma divisão tênue. O homem é silencioso, mas, a mulher, escuta-se nitidamente quando um dos sapatos de salto alto depois o outro são chutados para longe, batendo contra algum obstáculo para cair secamente no chão.A mulher do outro ri, enquanto o homem geme dentro dela. É possível que ela apenas tenha levantado o vestido e tirado a calcinha, para que ele a possuísse. A mulher daqui, deste quarto, estará acariciando, entorpecida, o próprio sexo. Deita-se de bruços e goza, impregnada do que chega do outro quarto, mas amanhã terá se esquecido disso. Nada, então, haverá se passado. A outra, lá, solta uma gargalhada depois de tudo terminado, rapidamente.Sente-se o cheiro dos corpos, também de um defumador. Novamente passos, agora descendo as escadas, sapatos de salto alto, outros não, a porta que é batida lá embaixo. Tudo tão gratuito, retalhos, como o piscar das luzes, o par bailando, sempre, no letreiro luminoso, mais uma noite.Haverá também música, vinda do Acadêmico, Dancing. A orquestra é boa, de velhos músicos, em sua maioria negros, velhos negros. Destacam-se os instrumentos de sopro."

terça-feira, 18 de setembro de 2007

Amor Bastante (Paulo Leminsk)


quando eu vi você
tive uma idéia brilhante
foi como se eu olhasse
de dentro de um diamante
e meu olho ganhasse
mil faces num só instante

basta um instante
e você tem amor bastante

um bom poema
leva anos
cinco jogando bola,
mais cinco estudando sânscrito,
seis carregando pedra,
nove namorando a vizinha,
sete levando porrada,
quatro andando sozinho,
três mudando de cidade,
dez trocando de assunto,
uma eternidade, eu e você,
caminhando junto


http://www.revista.agulha.nom.br/pl5.html#amor

Moqueca Capixaba (Renata Bomfim)

Ela vai sendo aquecida, lenta e
delicadamente, em fogo brando.
Sobre a mesa, o namorado,
temperado com amor, espera.

Pretinha de barro, filha de indio
seu colo acolhe o fruto do mar
fervilhante, emana seu odor
Esperam-na todos, deleitantes.

Um bom vinho, à mesa,
um silêncio respeitoso,
as bocas anseiam e marejam
como velas errantes ao mar.

E o namorado vai sendo devorado,
transubstanciação, pode-se sentir o
Espírito Santo no ceu da boca.
Divina moqueca capixaba!

*tomei a liberdade de postar um poeminha meu (que abusada!)

Rabisco (Luis Eustáquio Soares)

amor é algo em que se é indistinto e distingo os traços aços do seu rabisco e você me apresenta sem se apresentar sua poesia, seu eros da distância, seu eros da proximidade, e vejo borboletas entrelaçadas no ar, saltando, e são pássaros, e são insetos, e são folhas, e são gentes, e são seu tesão em vinho transfigurado nos sonhos que vejo, que desejo, que toco, que retoco, que ouço, que remoço, que degusto, que te gusto, que cheiro, que recheio, e você é minha extensão, os tatos atos de meus sentidos, e a saudade não tem idade, parece muito antes de mim, como se antes do ovo, antes do óvulo, do esperma, do gozo, algo-ouro-diamante-música-alegria-utopia-ressurreição-feto-paraíso-já e, antes de nascer, de escrever, de ser texto, de existir o mundo, antes/depois de Deus, no remotíssimo agora de não tê-la tendo, na tela-pintura de pintar-nos, a dois, a um, a mil, imagens em estrelas de nos darmos, de sermos dados, acaso do caso de um lance de dados e você não abolirá o acaso absoluto de fingir-se e fugir-se para as íris dos olhos da lua de seu estado de loba, e só quero ficar perto, e a distância não tem longe e a trago, porque no antes não tem depois, não tem tempo, não existem lugares, não tem o haver algo que haja, só o emaranhado de te ver com o sexo, te gozar com o olhos, te abraçar com a língua, te escutar com seu odor, te desejar com a saliva de seus poros, e seu cérebro é meu coração, e estou encouraçado, e quero, quero, quero, do jeito-livre, panteros, sua mordida, loba faminta, no clitóris do meu nome no seu nome: lume, lama, alma, no círculo de nosso circo, o curto-circuito, no cisco do risco, seu abdômen : é o rastilho da pólvora no barbante e, ante o volume deste instante, explodimos, diante da fúria dessa eternidade inconstante: .

Cartas de um sedutor (Hilda Hilst) fragmento do texto

Estou doente. Taco, meu médico e amigo prescreveu champanhe
gelado. Brut. E gelo nas têmporas. E sabes por que estou doente?
Porque pressinto surpresas, notícias inquietantes, vindas não sei de
onde, talvez de ti. (E por outra coisa que já te digo.) Sinto também que
não devemos continuar com as cartas. Te vejo dissimulada, escondendo
algo muito sério. Por que não permites que eu vá até sua casa? O que
guardas aí? De alguma maneira me transformaste num escriba ou
melhor num escrevinhador, e só de saber que tu me pensas escritor
agiganta-me a náusea. Que tipos petulantes! Que nojosos! Esgruvinham
as virilhas, o pregueado, escarafuncham os sórdidos corações, as
alminhas magras, e daí enchem-se de arrotos quando terminam os
textos. Verdade que adoro os livros, mas se pudesse arrancar de mim a
visão dos estufados que os escreveram vomitaria menos o mundo e a
própria vida. Tínhamos um amigo, o Stamatius (!) (eu só o chamava de
Tiu, porque, convenhamos, Stamatius não dá) que perdeu tudo, casa e
outros bens, porque tinha mania de ser escritor. Dizem que agora vive
catando tudo quanto há, é catador de lixo, percebes? Vive num cubículo
sórdido com uma tal de Eulália que deve ter nascido no esgoto. Muitos o
procuram para ajudá-lo. Não quer nem saber. O Tiu quer escrever, só
pensa nisso, pirou, sai correndo de pânico quando vê alguém que o
conheceu. Carrega no peito uma medalha de Santa Apolônia, protetora
dos dentes. Ah, não tem mais dentes. Bonito o Stamatius. Elegante,
esguio. A última coisa que fez antes de sumir por aí foi torcer as bolotas
de um editor, fazê-lo ajoelhar-se até o cara gritar: edito sim! edito o seu
livro! com capa dura e papel bíblia! Só então largou as bolotas e
balbuciou feroz: vai editar sim, mas a biografia da tua mãe, aquela
findinga, aquela léia, aquela moruxaba, aquela rabaceira escrachada
que fodeu com o jumento do teu pai - e quebrou-lhe os dentes com a
muqueta mais acertada que já vi. Quebrou a mão também. Bem, mas
isso não vem ao caso. Ao caso pior: o Kraus morreu. A Cuzinho num
acesso de indignação não só a cause do apelido mas desesperada com
todas as indignidades vindas do Tom, invadiu a casa do Kraus com o
linguão de fora, e alguns dizem que o perseguiu pela casa inteira uma
boa meia hora, escobilhando a comprida. Consta que o Kraus tapava o
aro morrendo de rir literalmente. E acreditas? Morreu. O Tom quer
provar homicídio, quer o testemunho de todos os amigos e dos
terapeutas também, mas quem é que vai acreditar que um cara morreu
de rir só com a ameaça de lhe lamberem o botão? A turma do pólo está
estudando um plano, alguma nefanda crueldade para Amanda. Dizem
que vão lhe enfiar algumas bolas de pólo polpas e pombinha adentro. Se
assim for resolvido manda-me os tocos dos tais ficheiros. Haja bola!
Tom foi medicado na hora do enterro de Kraus porque não suportou ver
o amigo morto e ainda sorrindo. Estou doente por tudo isso e porque
não posso pensar na morte, nem na minha nem na do Kraus nem da
barata, tenho medo da pestilenta senhora e imagino-me puxando-lhe o
grelo, esticando-lhe os pentelhos até ouvir sons tensos arrepiantes. Hoje
gritei demente: vem, Madama, vem, e irado, numa arrancada, soltei da
pestilenta grelo e pentelhos e eles esbateram-se frenéticos nos seus
baixos meios. Se pudesse seduzir a morte, lamber-lhe as axilas, os pêlos
pretos, babar no seu umbigo, enturpir-lhe as narinas de hálitos
melosos, e dizer-lhe: sou eu, gança, sou eu, mariposa, sou Karl, esse
que há de te chupar eternamente a borboleta se tu lhe permitires longa
vida na olorosa quirica do planeta.
Ciao, irmanita.

(Cartas de um sedutor - SP: Paulicéia, 1991.)

O vampiro da Alameda Casabranca (Márcia Denser)

A não ser pelo filme japonês em cartaz, não havia nenhum interesse em
sair com aquele sujeito, poeta, que se ostentava como "maldito" só para
poder filar seu canapezinho de caviar nas altas rodas. Um guru de fachada,
meio sobre o charlatão cósmico, adepto que era de uma esotérica seita
oriental, babaca como tantas outras, e usando tudo isso em proveito próprio.
Pelo menos não era burro. Disso resultavam as sessões de massagem transcendental
nas madames com hora marcada, ou mesmo sem ela, ao sabor das
prisões de ventre, dores de corno e outras piorréias. Não era mesmo burro.
Feioso, devia viver faminto de carne fresca mas, passando-se por espiritual,
ia tirando suas casquinhas. A conversa era inconsistente, cheia de expressões
pedantes e, até pela sintaxe, tão emaranhada em meandros que obviamente
não levavam a parte alguma, notava-se a eterna fome do cara. Uma espécie
de vaga ansiedade piedosa de algo que rodeia e rodeia aquilo que seria um
alvo, não tivesse ele em mira outra coisa. Por exemplo: enquanto sua boca
passeava pela evolução da energia cósmica, seus olhos hipnotizavam-se (bem
como toda sua alma) num ponto qualquer entre meus seios, e a energia
cósmica ia e vinha, subia e descia, jamais se perdia, enrolava e se desenrolava,
mas não chegava a nenhum lugar, uma vez que o verdadeiro objeto daquele
papo estéril permanecia fora de alcance. A arenga também seria hipnotizante:
eu me sentia como uma criança birrenta que não quer dormir ou um animal
relutante em cair na armadilha.
O tal filme japonês fora realmente bom, um monumento poético, um
estudo profundo sobre as paixões humanas etc. e assim eu poderia falar sobre
ele ad nauseam, mas o Poeta apenas emitiu suas impressões assim: "É barra!
Que barra! É uma barra!" dizendo-as de maneiras diferentes e empostando
a voz num diapasão enfático que partia da traquéia, explodindo num ruído
seco e rouco, feito um peido bucal, e como se a palavra "barra" contivesse,
não digo o significado de todo o universo, mas, pelo menos, de todo o filme.
Isso no fim da fita. Durante esteve todo o tempo tentando pegar no meu
braço. Um verdadeiro saco. Então eu me perguntava: por que sair com aquele
cara? Era desses feriados tediosos, todos os amigos queridos, todos os sujeitos
interessantes, todas as amigas disponíveis viajando, restando os neuróticos,
os chatos e os vampiros na cidade. Já era uma boa razão. Depois, eu apenas
desconfiava de tudo isso, ainda não configurara uma imagem nítida do Poeta
na minha cabeça. Na hora "H" fica possuída duma puxa-saquice pânica por
agradar, mais preocupada com o efeito que com o objeto propriamente dito.
Posso acabar fascinando Drácula em pessoa, sem dar pela coisa. Daí me livrar
do monstro já é outra história.
Como nesses clássicos de horror, ao sairmos do cinema "um vento
gélido açoitou-nos os ossos". Confesso que não fiquei surpreendida quando
o Poeta sugeriu passarmos no seu apartamento para pegar um pulôver,
coitadinho. Antes tentei aliciá-lo para uma cave de queijos e vinhos, mas ele
não entrou. Também não queria ser grossa ou passar por retró ou sei lá. No
fundo, no fundo, estava querendo ver até onde ia o meu fascínio - e eu sei
onde vai o meu fascínio - com o Poeta. Sabe-se lá.
No apartamento (não fosse pelo excesso de cartazes politicosos, até que
bem jeitoso. Um tanto "artístico-displicente" demais, eu acho, como tantos
outros onde eu estivera, de poetinhas, atores de teatro, bichas, são todos
iguais, deve ser a fada madrinha), eu aproveitei meu fascínio ao máximo.
Munida dos meus trabalhos, submeti o Poeta a uma intermitente sessão de
leitura dos melhores trechos por umas duas horas. Minhas estórias são boas,
mas lidas assim, no tapete, bebendo um bom vinho tinto, um fogo aqui
dentro, ar condicionado, almofadas e mantas peruanas, música suave e um
sujeito querendo me comer ali do lado, não há talento que resista. Então, ele
me submeteu a mais duas horas de suas poesias, aliás inéditas. Se fossem boas
até que valeria o esforço, o fascínio, a atenção fingida (tinha ganas de estourar
de rir cada vez que ele pigarreava, afivelando um ar circunspecto, como se
preparando para ler um discurso, um obituário, um testamento, enfim, algo
muitíssimo sério), o vinho, aquele apartamento, o filme japonês, os feriados,
aquelas profundas crateras que lhe sulcavam o rosto, o ligeiro cheirinho
oleoso e adocicado que se desprendia delas, a mania de falar de si próprio na
terceira pessoa, como se fosse um fantasma, o fato de ser careca de um lado
só, daí o cabelo restante se amontoar num topete atrás da orelha esquerda,
enfim, mas não eram. Não eram mesmo. Ocas, delírios vagos, desconexos,
de um concretismo de cabeça dura e reticências. Na mesma construção e
com a mesma ênfase conviviam vísceras e sangue, cosmos e eternidade, como
se essas palavras não significassem nada além de meros sons poéticos convencionais. Quando a coisa começava a esquentar, ele sempre botava as tais
palavras definitivas como Deus, Espaço, Eternidade, Morte, e esquecia as
preposições, tornando tudo assim delirantemente obscuro, como se possuísse
uma chave, um código para a sua decifração. Para os leigos, as garotas bonitas
e os novos-ricos quanto menos se entende, mais a coisa deve ser boa. Palavras
bonitas é igual a idéias bonitas. E gongórico, é elementar. O Poeta conhecia
muito bem esse princípio e aplicava-o até à exaustão. A minha, por exemplo.
Na verdade, algumas eram até sofríveis, mas parece que o sujeito tinha um
cadeado no cérebro. Estava prisioneiro. Não se enfrentava. E se começava a
botar a mão na merda, lá vinha ele com seus deuses e demônios anti-sépticos,
para lavar todos os pecados. Pelo menos os dele. Se achava que os tinha. Ser
feio, por exemplo, era um. Equilibrava-se definindo-se "pedante e sofisticado".
Supunha-se, dessa forma, inacessível. Enganava só os trouxas.
Na conversa, Poeta mencionou uma festa. Amigos intelectuais etc.
Então vamos, me animei, e fui emergindo das almofadas, procurando as
botas debaixo do sofá, espantando cobertores, relanceando um olhar melancólico
para as garrafas vazias, mas ele me reteve. Ainda não, disse, fixando-me
um olhar tigrino cor de petróleo. Era como um aquário, a exposição, atrás
do vidro córneo, do que havia no interior de suas espinhas mortas: óleo diesel.
O pequeno deus Caracol, o deus dos covardes, deve habitar em mim,
pois foi ele que me fez encolher, puxando consigo todas as terminais nervosas,
todas as sensações de prazer e dor, toda alegria, todo pranto, e me transformar
num penhasco árido, num terreno baldio entregue às varejeiras, aos cacos de
vidro, lixo, mato ralo, aos cães vira-latas, e aos teus beijos, Poeta.
Uma zoeira distante no ouvido, uma sensação incômoda nas costelas,
a boca seca, avisaram-me que bastava. Fui me desprendendo aos poucos.
Tarefa, aliás, bastante embaraçosa. Eu diria hilariante, se não fosse parte ativa.
Parecíamos atores de um filme do Harold Loyd. Eu puxando de cá, ele de
lá. Um escorregão providencial da minha parte (estávamos em pé) decidiu a
contenda. Fomos à festa.
A primeira coisa que chamou minha atenção foi que o dono da casa - por sinal, um belíssimo rapaz - usava, atadas na manga da camisa, duas fitas
de seda nas cores da bandeira nacional. Assim como os rapazes da TFP, a
juventude de Hitler, os pupilos de Mussolini. Como um ungido, a marca da
distinção, do bem-nascido, bem-dotado, bem rico, a nata, a perfeição e vocês
fora! E viva Nietzsche e o quarto Reich, logo, o General Pinochet, Idi Amin,
Pol Pot, Gengis Khan e o Golpe de 64. Puxei-o pela manga: O que é isso?
Sorriu com seus olhos azuis de água doce: Não é um belo país? É. Olhei a
mesa: vinhos franceses, queijos suíços, baixela húngara, guarnições de renda
austríaca, charutos cubanos, vodca russa, cigarros americanos. Belíssimo país.
Belo mesmo é você, pensei cinicamente, cobiçando a belezinha de jovem
fascista e seus brinquedinhos, entre eles uma linda esposa loura e psicóloga
formada pelo período da tarde do cursinho Objetivo, altura e peso ideais
segundo a Revista Cláudia e preocupadíssima com seus encargos de anfitriã
(repetiu neuroticamente a noite toda que "a previsão falhou" a propósito de
haver terminado o queijo de nozes antes das duas da matina). E os intelectuais?
Da "festa" constavam exatamente dez pessoas. Além dos anfitriões, eu
e o Poeta/Profeta, havia um outro casal composto de um sujeito enorme,
estilo Cro-Magnon, filho de general, com o curioso nome de Ciro, faixa
preta em caratê e que me foi apresentado como um pintor maravilhoso,
porém desiludido (o pessoal devia ser positivamente cego) e cocainômano
ativo, acompanhado por uma garota misto de Dama das Camélias e Madrasta
da Branca de Neve: profundas olheiras azuladas, cabelos crespos e negros
acentuando oleosamente o rosto pálido, ossudo, lunar, quase transparente,
usando uma camisa branca também transparente (seios nada transparentes)
sem sutiã, a chamar atenção de todos para os seus pés feridos pelas sapatilhas.
Bailarina? Não sei. A cidade está cheia desses cursinhos de balé e bordado,
freqüentados por jovens em idade de casar e manter a forma. Para compensar
as festinhas movidas a vinho, coca e mau humor de suas excelências, seus
namorados, pelos quais elas são capazes de se foder por toda a eternidade,
em troca de um sobrenome enganchado no rabo e um apartamento nos
Jardins: os homens têm as angústias, as mulheres, os interesses, e por ai vai.
Roger, o intelectual oficial, amigo do Poeta de proveta, um sujeitinho
magricela, insignificante (essa palavra é enorme!), apagado na minha memória,
acompanhava uma cooperante do governo americano junto ao Brasil,
uma garota da Califórnia com cara de porto-riquenha. Ela deveria detestar
aquela cara tropical, a pele morena, cabelos negros cortados rente, como se
pagando uma pena, os olhos escuros feito morcegos assustados, encolhidos
no fundo da fisionomia. Que fazer se sua mãe havia pulado o muro do
México? Roger, o colonizado, desmanchava-se em atenções para com o
produto de Tio Sam, mas eu imagino que, para ele, bastaria qualquer coisa,
uma lata de sopa Campbell, digamos. Que representasse a civilização, a
cultura superior etc. Razões inconfessáveis. Não via nela apenas uma garota
assustada num país estranho. Assim como eu não enxergava o aspecto
repugnante do meu guru-poeta. Tampava o nariz, os olhos, a boca, e o
engolia em nome de uma vaidade idiota. Presentes também um par de primos
dentuços e noivos que se despediu cedo. Eu aposto que pra ver televisão e se
agarrar no sofá.
A madrugada evoluiu naquele apartamento neoclássico, com ativa
movimentação de garrafas de vinho, rodadas de cocaína, camembert rançoso
e conversas idiotas. Já estava amanhecendo e restavam os donos da casa, Ciro,
Branca de Neve, Poeta e eu, já me sentindo completamente onipotente.
Sentimento provavelmente compartilhado por todos, uma vez que a conversa girava sobre vida extraterrena, enquanto Brinquedinho raspava com uma
pazinha de sorvete os restos de pó grudados no bumbum da garota na capa
da revista Playboy. Excelente anfitriã. Belo Fascista inquiria o Poeta:
- Você, Klaus, que é um cara ligado nessas coisas, e entende pacas, já
deve ter tido revelações, não?
- Bem, começou o outro, pode-se dizer que nós (falava sémpre no
plural, aludindo estranhamente uma cumplicidade invisível. Quem sabe
com os deuses) chegamos a fazer vários contatos realmente inexplicáveis, eu
diria, por exemplo, quando morreu a Dorinha...
- A Dorinha não morreu, trovejou Ciro, olhos vidrados numa faca
de cortar frios.
- Talvez sim, talvez não, condescendeu misteriosamente Klaus, muitos de nós já chegaram a...
- Besteiras, não há nada, cortei. Estive lá em cima e vi: estão todos
mortos. E voltando-me para o meu anfitrião: Um trechinho de seu autor
predileto, beleza...
- Como? - Belo Fascista arregalava os doces olhos azuis.
- Ela divaga - Poeta endereçou-me um olhar enviesado, - mas
como eu dizia, a Dorinha...
- Agora que estou vendo, interrompi novamente. De repente, Ciro e
Branca de Neve me pareceram estranhíssimos: ele enorme, truculento, ela
frágil, meio amalucada...
- Vocês não têm nada a ver, não é? Sorria para ambos como abençoando-os. Klaus, desorientado, arreganhava os dentes, desculpando sua convidada.
- Terrível, terrível, arfava Branca de Neve.
- Pensando bem, acho que a garota tem razão, Ciro não tirava os olhos
da faca.
- E como é que vocês tre... Um violento cutucão do Guru, debaixo
da mesa, fez-me engolir o resto da frase.
Depois disso, fui mergulhando cada vez mais fundo num burburinho
ácido e esbranquiçado. As frases se sucediam de cá para lá, e eu as acompanhava
como bolinhas num jogo de ping-pong, apenas como bolinhas, que
não são nada além de bolinhas brancas.
Levantei-me e fui até a janela: É isso, pensei, sufocar a ressaca, afogá-la
na boca cinzenta e azeda da manhã como num cesto de roupa suja. Esse é o
preço pago pela droga consumida durante a madrugada, porque a droga tem
o segredo que afoga a náusea, o vômito, a acidez desse vinho escuro injetado
nas veias desde a noite anterior, então, ao amanhecer, foi puxada a descarga,
sentido um só tranco, o estômago a brecar e a gemer no alto de um prédio
no Pacaembu e isso foi quase tudo. Quase porque eu ainda não terminara.
Porque o vazio, após a descarga, é insuportável. O vaso sanitário fica deserto
e se tem medo de tornar a usá-lo e infectar o mundo inteiro. A náusea que
se instala expulsa a razão, amedronta as palavras, e eu precisava falar que
daquela madrugada ficou um gosto arrepanhado de sal de frutas, a efervescência
cinza-pérola do antiácido diante dos olhos e uma tristeza secreta e
corrompida por me saber mole, dobrável, e ainda uma vez voltar a fazer coisas
que não quero, não preciso, não desejo, todavia o álcool e a droga me levam
lá, uma espécie de morte incluída nos serviços de buffet; a cada episódio eu
morro, e eu morro, e eu morro de novo, e volto a me assassinar, porque
contar essa estória é o mesmo que atacar a mesma mulher há anos, violentamente,
por trás, e como se ela fosse virgem, então, o toque no ombro, o hálito
amanhecido às minhas costas: Klaus. Haviam escurecido a sala. Silenciosamente, colocou-me o casaco e, na condição de irmãozinho mais velho,
carregou-me para longe daqueles perigos. Seu apartamento, por exemplo.
Lembro de um café da manhã numa mesa com toalha de plástico, e um
enorme queijo de Minas. Eu estava chapadíssima, achando o queijo muito
engraçado e porque não podia aparecer em casa de modo algum naquele
estado. Klaus, este então parecia esmagado sob o peso da recompensa. Ele
tinha mesmo uma cara amassada de vilão do faroeste depois da última briga,
versão piorada entre Jack Palance e John Carradine. Cara picada pelo
ressentimento e pela varíola, obtinha dormir com a mocinha sem mais
aquela. Era demais. Ele vai broxar, pensei.
Havia sol, mas estava frio e úmido e o Poeta, muito solícito, uniu duas
camas gêmeas, cobriu-as com mantas, enquanto eu me despia, obedientemente, cumprindo um ritual sem escapatória, filha de Maria, sacerdotisa de
Astarté, coroinha alimentado e fodido secretamente pelo padre, eu obedecia,
apenas. Fiquei de bruços, fechei os olhos, pensando: o prazer puro, o prazer
puro. Não poderia ver aquele rosto agora, seria insuportável, seria inconcebível,
e eu acho que ele me ficou agradecido. Mesmo assim não conseguia.
Estava submerso em droga e álcool, uma chaga viva de excitação que pulsava
e gemia, rilhando os dentes, pobre animal sonâmbulo imaginando-se um ser
humano de carne, ossos e fezes, se esvaindo entre minhas nádegas numa
tortura aplicada de movimentos ineficientes; uma vez que ele não conseguia,
o animal depositava-se como um pedaço morto de carne fria junto ao meu
corpo. Vamos liquidar isso, pensei. Sentia-me cansada, nauseada, azeda. A
excitação esticava-se como um cordão frouxo contudo sem arrebentar. Vi
pela janela a manhã alta, cor de magnésia, e disse: chega, vamos dormir. às
minhas costas, ele desabou, barraquinha de campanha, como se o tempo
todo estivesse aguardando a ornem que o libertasse da prontidão. Segundos
depois ressonava eloqüentemente. Adormeci pensando onde havia me metido,
aquele apartamento de solteiro da Alameda Casabranca tinha algo a ver
com um túmulo, gente adormecendo ao nascer do sol, falta só o punhal de
prata, mas, por alguma razão maluca, não queria ir para casa e não queria
ficar ali. O sono me colocou no lugar certo. Estaria sonhando com um
jardineiro espanhol ou com tesouras, não sei, e acordei salgadamente sentindo
algo vivo se mover, quente e alerta, entre minhas coxas. Pulei da cama,
como se impulsionada por retrofoguetes: fugir, pensava, fugir, correr, vomitar,
se vestir. E fui apanhando os destroços das roupas atiradas pelo quarto.
Ao subir as meias, espiei com o canto do olho a cara atônita, amassada de
Klaus, parecendo um pedaço carbonizado de casca de árvore na brancura de
areia dos lençóis. A boca entreaberta não ousava protestar, articular nenhum
som, com aquele ar de bagre estúpido, aquele ar de fóssil humano: a qualquer
palavra minha, viria a réplica de bernardo-eremita na voz de fariseu sufocado
e eu não queria deixar nada claro. A coisa, naquele pé, já parecia suficientemente
ridícula, uma pornochanchada sinistra: ele, de pau duro debaixo das
cobertas, cara de idiota, observando a mocinha se vestir num desespero
vertiginoso, como se perseguida por Jack, o Estripador. Faltava vestir o casaco
e me lancei para fora do quarto. Uma empregada velhíssima e cheia de varizes
abriu-me a porta da rua. Desci pelas escadas. Nem cogitei estar no 152 andar.
Alcançando finalmente a rua, parei ofegante. Porra, estava livre. Leve. Livre.
Comecei a rir sozinha: até que fora bem gozado. Cambaleante e feliz, ri por
dois quarteirões. As pessoas se voltavam, espantadas. Um perfume de
pãezinhos frescos me atraiu para uma padaria cheia de colegiais e
empregadinhas.
Mastigando um enorme sanduíche de presunto, pedi ao vendedor a
lista telefônica. Forrando página por página com lascas de pão fresco,
procurei o número do Belo Fascista. Não sabia por quê, mas precisava salvar
a noite. Alô, uma vozinha sonada gemeu do outro lado. Reconheci
Brinquedinho. Escute, princesa, falei, diga ao seu marido que preciso fazer
uma substituição (era necessário ir direto ao assunto, nada de formalismos
idiotas com a família e os cachorros. Tratamento de choque). O quê? A voz
prosseguia estremunhando. Uma outra, de homem, metralhava abafadamente
qualquer coisa. Era seca e urgente, falando aos soquinhos parecia
martelar ordens. Brinquedinho explicava confusamente algo sobre a namorada
de Klaus e uma substituição. Afinal, era uma objetiva formada pelo
Objetivo. O que está havendo? Belo Fascista pegara o aparelho. Parecia um
bocado irritado. Expliquei da melhor forma. Por fim, convidei-o para tomar
café da manhã comigo, ali, na Padaria Flor de Lys, que ficava na rua... Pedi
para esperar na linha enquanto ia ver. Quando retomei o fone, apenas o ruído
de discar respondeu melancolicamente ao meu apelo. Belo Fascista não tinha
mesmo nenhum senso de humor. Tão bonitinho, murmurei cheia de pena.
O pão terminara e enquanto esperava o troco, espiei meu rosto no espelho
da balança. Borrado de rímel preto, o rouge coloria mais a face esquerda,
olheiras azuladas. Igualzinha Branca de Neve. Esfregar o dedo acentuou a
palidez, mas servia. Ainda não dava para espantar as crianças. Na saída, resolvi
comprar outro sanduíche para ir comendo no caminho. Esquentara e eu
amarrei o casaco na cintura - um casaco lindo, de veludo caramelo - e o
pessoal continuou me encarando. Sempre comendo o pão, fui subindo a rua
cheia de árvores verdinhas e rendilhada de sol. Lembrei de uma passagem de
Faulkner no Som e a Fúria. Afinal, alcancei a Avenida Paulista suando e
arrotando salame. Em frente a Casa Vogue - que não é mais a Casa Vogue
- tentei pegar um táxi. Nada. Decidi ir andando. Até o Paraíso são quatro
quilômetros, mas no plano. Achei razoável. Entrei no Jardim do Trianon.
Um pouco de ar puro, pensei, ecologia, patos, marrecos, galinhas, desocupados.
Ecologia. Comprei um saquinho de pipoca. Um garoto de seus 17
anos atirava farelo aos perus - detesto esse ar superiormente abestalhado
que têm as aves em geral - e perguntei a ele se valia atirar pipoca. Lógico,
disse, e enfiando a mão no meu saquinho, retirou um punhado e atirou-o
aos bichos. Era um encanto de garoto, um ninfeto dos bosques, cabelos
alourados de sol e piscina de clube, a camisa xadrez aberta exibia o peito liso,
moreno e uma medalhinha de San Genaro. Perguntei se era italiano. Meu
pai, respondeu sorrindo. Falava com simplicidade e delicadeza. Como se
fosse a coisa mais natural do mundo topar num domingo com uma garota,
às onze da manhã, cara toda borrada de pintura, casaco de veludo amarrado
nos quadris, um pão semicomido na mão, um saco de pipoca na outra. Ele
era a própria manhã: jovem, fresco, belo, puro. Me senti mal. Queria lavar
o rosto, tomar um banho, convidá-lo a passear comigo no Ibirapuera, que é
o maior parque que eu conheço, sei lá onde. Melhor ir andando. Ele ficou
olhando eu me afastar com simpatia, assim, também sem perguntar nada.
Uma névoa de cansaço descia sobre o jardim. Senti-me longe, minha casa
longíssima, o apartamento de Klaus ainda mais longe, em outro país, outro
tempo. Ajeitei-me num banco de pedra limosa e dormi. Um segundo depois
acordei: alguém me cutucava as costas com um objeto duro e pontudo. Outra
vez, pensei. Mas era só uma vassoura e o homem devia ser o zelador do
parque. Percebi vagamente que anoitecia.
- Levaram sua bolsa e seu casaco, dona, é bom dar parte na polícia,
falava com uma voz monótona, anasalada, repetindo sempre sobre o roubo
e a polícia.
- Pra que a vassoura?, murmurei idiotamente, ainda aturdida pelo
sono. O corpo dolorido. Meu casaco e a bolsa?
- Você tá mal, hein? Deu moleza, já viu, nego passa a mão mesmo,
acho bom dar parte na...
-Já vou, já vou. Como fazê-lo calar? Estiquei as pernas. Intactas ainda
minha calça de veludo e a camisa de seda. Bem, foi-se, pensei. No que deu
o vampirismo poético. Judas, o obscuro, estaria agora em seu lindo apezinho
ouvindo Beethoven e jantando carneiro ensopado com legumes, preparado
por Lady Varizes, a copeira. Aquela cara amassada, descomposta, mastigando
a sobremesa, aqueles olhos duros, machucados, e o animal adormeceria
tranqüilamente entre seus panfletos comunistas, fumando cigarros mentolados.
Era demais. Vomitei espasmodicamente num canteiro de hortênsias.
Resolvi voltar para casa. Lá pagariam o táxi. Então lembrei: estavam todos
viajando. Todos os amigos, todos os sujeitos, todas as amigas etc. Eu estava
sem a bolsa, sem as chaves, com frio, fome e precisando de um banho. No
táxi, suspirando, dei o endereço de Klaus.

O afogado (Rúbem Braga)

Não, não dá pé. Ele já se sente cansado, mas compreende que ainda
precisa nadar um pouco. Dá cinco ou seis braçadas, e tem a impressão
de que não saiu do lugar. Pior: parece que está sendo arrastado para fora.
Continua a dar braçadas, mas está exausto.
A força dos músculos esgotou-se; sua respiração está curta e opressa.
É preciso ter calma. Vira-se de barriga para cima e tenta se manter assim,
sem exigir nenhum esforço dos braços doloridos. Mas sente que uma onda
grande se aproxima. Mal tem tempo para voltar-se e enfrentá-la. Por um
segundo pensa que ela vai desabar sobre ele, e consegue dar duas braçadas
em sua direção. Foi o necessário para não ser colhido pela arrebentação; é
erguido, e depois levado pelo repuxo. Talvez pudesse tomar pé, ao menos
por um instante, na depressão da onda que passou. Experimenta: não. Essa
tentativa frustrada irrita-o e cansa-o. Tem dificuldade de respirar, e vê que
já vem outra onda. Seria melhor talvez mergulhar, deixar que ela passe por
cima ou o carregue; mas não consegue controlar a respiração e fatalmente
engoliria água; com o choque perderia os sentidos. É outra vez suspenso pela
água e novamente se deita de costas, na esperança de descansar um pouco os
músculos e regular a respiração; mas vem outra onda imensa. Os braços
negam-se a qualquer esforço; agita as pernas para se manter na superfície e
ainda uma vez consegue escapar à arrebentação.
Está cada vez mais longe da praia, e alguma coisa o assusta: é um grito
que ele mesmo deu sem querer e parou no meio, como se o principal perigo
fosse gritar. Tem medo de engolir água, mas tem medo principalmente
daquele seu próprio grito rouco e interrompido. Pensa rapidamente que, se
não for socorrido, morrerá; que, apesar da praia estar cheia nessa manhã de
sábado, o banhista da Prefeitura já deve ter ido embora; o horário agora é de
morrer, e não de ser salvo. Olha a praia e as pedras; vê muitos rapazes e moças,
tem a impressão de que alguns o olham com indiferença. Terão ouvido seu
grito? A imagem que retém melhor é a de um rapazinho que, sentado na
pedra, procura tirar algum espeto do pé.
A idéia de que precisará ser salvo incomoda-o muito; desagrada-lhe
violentamente, e resolve que de maneira alguma pedirá socorro, mesmo
porque naquela aflição já acha que ele não chegaria a tempo. Pensa insistentemente isto: calma, é preciso ter calma. Não apenas para salvar-se, ao
menos para morrer direito, sem berraria nem escândalo. Passa outra onda,
mais fraca; mas assim mesmo ela rebenta com estrondo. Resolve que é melhor
ficar ali fora do que ser colhido por uma onda: com certeza, tendo perdido
as forças, quebraria o pescoço jogado pela água no fundo. Sua respiração está
intolerável, acha que o ar não chega a penetrar nos pulmões, vai só até a
garganta e é expelido com aflição; tem uma dor nos ombros; sente-se completamente fraco.
Olha ainda para as pedras, e vê aquela gente confusamente; a água lhe
bate nos olhos. Percebe, entretanto, que a água o está levando para o lado
das pedras. Uma onda mais forte pode arremessá-lo contra o rochedo; mas,
apesar de tudo, essa idéia lhe agrada. Sim, ele prefere ser lançado contra as
pedras, ainda que se arrebente todo. Esforça-se na direção do lugar de onde
saltou, mas acha longe demais; de súbito, reflete que à sua esquerda deve
haver também uma ponta de pedras. Olha. Sente-se tonto e pensa: vou
desmaiar. Subitamente, faz gestos desordenados e isso o assusta ainda mais;
então reage e resolve, com uma espécie de frieza feroz, que não fará mais esses
movimentos idiotas, haja o que houver; isso é pior do que tudo, essa epilepsia
de afogado. Sente-se um animal vencido que vai morrer, mas está frio e
disposto a lutar, mesmo sem qualquer força; lutar ao menos com a cabeça;
não se deixará enlouquecer pelo medo.
Repara, então, que, realmente, está agora perto de uma pedra, coberta
de mariscos negros e grandes. Pensa: é melhor que venha uma onda fraca; se
vier uma muito forte, serei jogado ali, ficarei todo cortado, talvez bata com
a cabeça na pedra ou não consiga me agarrar nela; e se não conseguir me
agarrar da primeira vez, não terei mais nenhuma chance.
Sente, pelo puxão da água atrás de si, que uma onda vem, mas não olha
para trás. Muda de idéia; se não vier uma onda bem forte, não atingirá a
pedra. Junta todos os restos de forças; a onda vem. Vê então que foi jogado
sobre a pedra sem se ferir; talvez instintivamente tivesse usado sua experiência
de menino, naquela praia onde passava as férias, e se acostumara a nadar até
uma ilhota de pedra também coberta de mariscos. Vê que alguém, em uma
pedra mais alta, lhe faz sinais nervosos para que saia dali, está em um lugar
perigoso. Sim, sabe que está em um lugar perigoso, uma onda pode cobri-lo
e arrastá-lo, mas o aviso o irrita; sabe um pouco melhor do que aquele sujeito
o que é morrer e o que é salvar-se, e demora ainda um segundo para se erguer,
sentindo um prazer extraordinário em estar deitado na pedra, apesar do risco.
Quando chega à praia e senta na areia está sem poder respirar, mas sente mais
vivo do que antes o medo do perigo que passou.
"Gastei-me todo para salvar-me, pensa, meio tonto; não valho mais
nada." Deita-se com a cabeça na areia e confusamente ouve a conversa de
uma barraca perto, gente discutindo uma fita de cinema. Murmura, baixo,
um palavrão para eles; sente-se superior a eles, uma idiota superioridade de
quem não morreu, mas podia perfeitamente estar morto, e portanto nesse
caso não teria a menor importância, seria até ridículo de seu ponto de vista
tudo o que se pudesse discutir sobre uma fita de cinema. O mormaço lhe dá
no corpo inteiro um infinito prazer.

Rubem Braga, considerado por muitos o maior cronista brasileiro desde Machado de Assis, nasceu em Cachoeiro de Itapemirim, ES, a 12 de janeiro de 1913.

Saiba mais: http://www.releituras.com/rubembraga_bio.asp