quarta-feira, 26 de setembro de 2007

Elegia na Sombra (Fernando Pessoa)

Lenta, a raça esmorece, e a alegria
É como uma memoria de outrem. Passa
Um vento frio na nossa nostalgia
E a nostalgia torna-se desgraça.

Pesa em nós o passado e o futuro.
Dorme em nós o presente. E a sonhar
A alma encontra sempre o mesmo muro,
E encontra o mesmo muro ao dispertar.

Quem nos roubou a alma? Que bruxedo
De que magia incognita e suprema
Nos enche as almas de dolencia e medo
Nesta hora inutil, apagada e extrema?

Os heroes resplandecem a distancia
Num passado impossivel de se ver
Com os olhos da fé ou os da ancia.
Lembramos nevoa, sombras a esquecer.

Que crime outrora feito, que peccado
Nos impoz esta esteril provação
Que é indistinctamente nosso fado
Como o pressente nosso coração?

Que victoria maligna conseguimos –
Em que guerra, com que armas, com que armada? –
Que assim o seu castigo irreal sentimos
Collado aos ossos d'esta carne errada?

Terra tam linda com heroes tam grandes,
Bom sol universal localizado
Pelo melhor calor que aqui expandes,
Calor suave e azul só a nós dado –

Tanta belleza dada e gloria ida!
Tanta esperança que, depois da gloria,
Só conheceu que é facil a descida
Das encostas anonymas da historia!

Tanto, tanto! Que é feito de quem foi?
Ninguem volta? Do mundo subterraneo
Onde a sombria luz por nulla doe,
Pesando sobre onde já esteve o craneo,

Não restitue Plutão a sob o ceu
Um heroe ou o animo que o faz,
Como Eurydice dada á dor de Orpheu;
Ou restituiu, e olhámos para traz?

Nada. Nem fé nem lei, nem mar nem porto.
Só a prolixa estagnação das maguas,
Como nas tardes baças, no mar morto,
A dolorosa solidão das aguas.

Povo sem nexo, raça sem supporte,
Que, agitada, indecisa, nem repare
Em que é raça, e que aguarda a propria morte
Como a um comboio expresso que aqui pare.

Torvelinho de duvidas, descrença
Da propria conciencia de se a ter,
Nada ha em nós que, firme e crente, vença
Nossa impossibilidade de querer.

Plagiarios da sombra e do abandono,
Registramos, quietos e vazios,
Os sonhos que ha antes que venha o somno
E o somno inutil que nos deixa frios.

Oh, que ha de ser de nós? Raça que foi
Como que um novo sol occidental
Que houve por typo o aventureiro e o heroe
E outrora teve nome Portugal...

(Falla mais baixo! Deixa a tarde ser
Ao menos uma externa quietação
Que por ser fóra faça menos doer
Nosso descompassado coração.

Falla mais baixo! Somos sem remedio,
Salvo se do ermo abysmo onde Deus dorme
Nos venha dispertar do nosso tedio
Qualquer obscuro sentimento informe.

Silencio quasi! Nada digas! Cala
A esperança vazia em que te acho,
Patria. Que doença de teu ser se exhala?
Tu nem sabes dormir. Falla mais baixo!)

Ó incerta manhã de nevoeiro
Em que o Rei morto vivo tornará
Ao povo ignobil e o fará inteiro –
És qualquer coisa que Deus quer ou dá?

Quando é a tua Hora e o teu Exemplo?
Quando é que vens, do fundo do que é dado,
Cumprir teu rito, reabrir teu Templo
Vendando os olhos lucidos do Fado?

Quando é que sôa, no deserto de alma
Que Portugal é hoje, seu sentir,
Tua voz, como um balouçar de palma
Ao pé do oasis do que possa vir?

Quando é que esta tristeza desconforme
Verá, desfeita a tua cerração,
Surgir um vulto, no nevoeiro informe,
Que nos faça sentir o coração?

Quando? Estagnamos. A melancholia
Das horas successivas que a alma tem
Enche de tedio a noite, e chega o dia
E o tedio augmenta porque o dia vem.

Patria, quem te feriu e envenenou?
Quem, com suave e maligno fingimento
Teu coração supposto socegou
Com abundante e inutil alimento?

Quem fez que durmas mais do que dormias?
Que fez que jazas mais que até aqui?
Aperto as tuas mãos: como estão frias!
Mãe do meu ser que te ama, que é de ti?

Vives, sim, vives porque não morreste...
Mas a vida que vives é um somno
Em que indistinctamente o teu ser veste
Todos os sambenitos do abandono.

Dorme, ao menos, de vez. O Desejado
Talvez não seja mais que um sonho louco
De quem, por muito te ter, Patria, amado,
Acha que todo o amor por ti é pouco.

Dorme, que eu durmo, só de te saber
Presa da inquietação que não tem nome
E nem revolta ou ansia sabe ter
Nem da esperança sente sede ou fome.

Dorme, e a teus pés teus filhos, nós que o somos,
Colheremos, inuteis e cansados
O agasalho do amor que ainda pomos
Em ter teus pés gloriosos por amados.

Dorme, mãe Patria, nulla e postergada,
E, se um sonho de esperança te surgir,
Não creias nelle, porque tudo é nada,
E nunca vem aquillo que ha de vir.

Dorme, que a tarde é finda e a noite vem.
Dorme, que as palpebras do mundo incerto
Baixam solemnes, com a dor que têm,
Sobre o mortiço olhar inda disperto.

Dorme, que tudo cessa, e tu com tudo,
Quererias viver eternamente,
Ficção eterna ante este espaço mudo
Que é um vacuo azul? Dorme, que nada sente,

Nem paira mais no ar, que fora almo
Se não fora a nossa alma erma e vazia,
Que o nosso fado, vento frio e calmo
E a tarde de nós mesmos, calma e fria –

Como - longinquo sopro altivo e humano! –
Essa tarde monotona e serena
Em que, ao morrer, o imperador romano
Disse: Fui tudo, nada vale a pena.

2-6-1935


Edição Crítica de Fernando Pessoa - Volume I. Edição de Luís Prista. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2000.

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