terça-feira, 18 de setembro de 2007

O afogado (Rúbem Braga)

Não, não dá pé. Ele já se sente cansado, mas compreende que ainda
precisa nadar um pouco. Dá cinco ou seis braçadas, e tem a impressão
de que não saiu do lugar. Pior: parece que está sendo arrastado para fora.
Continua a dar braçadas, mas está exausto.
A força dos músculos esgotou-se; sua respiração está curta e opressa.
É preciso ter calma. Vira-se de barriga para cima e tenta se manter assim,
sem exigir nenhum esforço dos braços doloridos. Mas sente que uma onda
grande se aproxima. Mal tem tempo para voltar-se e enfrentá-la. Por um
segundo pensa que ela vai desabar sobre ele, e consegue dar duas braçadas
em sua direção. Foi o necessário para não ser colhido pela arrebentação; é
erguido, e depois levado pelo repuxo. Talvez pudesse tomar pé, ao menos
por um instante, na depressão da onda que passou. Experimenta: não. Essa
tentativa frustrada irrita-o e cansa-o. Tem dificuldade de respirar, e vê que
já vem outra onda. Seria melhor talvez mergulhar, deixar que ela passe por
cima ou o carregue; mas não consegue controlar a respiração e fatalmente
engoliria água; com o choque perderia os sentidos. É outra vez suspenso pela
água e novamente se deita de costas, na esperança de descansar um pouco os
músculos e regular a respiração; mas vem outra onda imensa. Os braços
negam-se a qualquer esforço; agita as pernas para se manter na superfície e
ainda uma vez consegue escapar à arrebentação.
Está cada vez mais longe da praia, e alguma coisa o assusta: é um grito
que ele mesmo deu sem querer e parou no meio, como se o principal perigo
fosse gritar. Tem medo de engolir água, mas tem medo principalmente
daquele seu próprio grito rouco e interrompido. Pensa rapidamente que, se
não for socorrido, morrerá; que, apesar da praia estar cheia nessa manhã de
sábado, o banhista da Prefeitura já deve ter ido embora; o horário agora é de
morrer, e não de ser salvo. Olha a praia e as pedras; vê muitos rapazes e moças,
tem a impressão de que alguns o olham com indiferença. Terão ouvido seu
grito? A imagem que retém melhor é a de um rapazinho que, sentado na
pedra, procura tirar algum espeto do pé.
A idéia de que precisará ser salvo incomoda-o muito; desagrada-lhe
violentamente, e resolve que de maneira alguma pedirá socorro, mesmo
porque naquela aflição já acha que ele não chegaria a tempo. Pensa insistentemente isto: calma, é preciso ter calma. Não apenas para salvar-se, ao
menos para morrer direito, sem berraria nem escândalo. Passa outra onda,
mais fraca; mas assim mesmo ela rebenta com estrondo. Resolve que é melhor
ficar ali fora do que ser colhido por uma onda: com certeza, tendo perdido
as forças, quebraria o pescoço jogado pela água no fundo. Sua respiração está
intolerável, acha que o ar não chega a penetrar nos pulmões, vai só até a
garganta e é expelido com aflição; tem uma dor nos ombros; sente-se completamente fraco.
Olha ainda para as pedras, e vê aquela gente confusamente; a água lhe
bate nos olhos. Percebe, entretanto, que a água o está levando para o lado
das pedras. Uma onda mais forte pode arremessá-lo contra o rochedo; mas,
apesar de tudo, essa idéia lhe agrada. Sim, ele prefere ser lançado contra as
pedras, ainda que se arrebente todo. Esforça-se na direção do lugar de onde
saltou, mas acha longe demais; de súbito, reflete que à sua esquerda deve
haver também uma ponta de pedras. Olha. Sente-se tonto e pensa: vou
desmaiar. Subitamente, faz gestos desordenados e isso o assusta ainda mais;
então reage e resolve, com uma espécie de frieza feroz, que não fará mais esses
movimentos idiotas, haja o que houver; isso é pior do que tudo, essa epilepsia
de afogado. Sente-se um animal vencido que vai morrer, mas está frio e
disposto a lutar, mesmo sem qualquer força; lutar ao menos com a cabeça;
não se deixará enlouquecer pelo medo.
Repara, então, que, realmente, está agora perto de uma pedra, coberta
de mariscos negros e grandes. Pensa: é melhor que venha uma onda fraca; se
vier uma muito forte, serei jogado ali, ficarei todo cortado, talvez bata com
a cabeça na pedra ou não consiga me agarrar nela; e se não conseguir me
agarrar da primeira vez, não terei mais nenhuma chance.
Sente, pelo puxão da água atrás de si, que uma onda vem, mas não olha
para trás. Muda de idéia; se não vier uma onda bem forte, não atingirá a
pedra. Junta todos os restos de forças; a onda vem. Vê então que foi jogado
sobre a pedra sem se ferir; talvez instintivamente tivesse usado sua experiência
de menino, naquela praia onde passava as férias, e se acostumara a nadar até
uma ilhota de pedra também coberta de mariscos. Vê que alguém, em uma
pedra mais alta, lhe faz sinais nervosos para que saia dali, está em um lugar
perigoso. Sim, sabe que está em um lugar perigoso, uma onda pode cobri-lo
e arrastá-lo, mas o aviso o irrita; sabe um pouco melhor do que aquele sujeito
o que é morrer e o que é salvar-se, e demora ainda um segundo para se erguer,
sentindo um prazer extraordinário em estar deitado na pedra, apesar do risco.
Quando chega à praia e senta na areia está sem poder respirar, mas sente mais
vivo do que antes o medo do perigo que passou.
"Gastei-me todo para salvar-me, pensa, meio tonto; não valho mais
nada." Deita-se com a cabeça na areia e confusamente ouve a conversa de
uma barraca perto, gente discutindo uma fita de cinema. Murmura, baixo,
um palavrão para eles; sente-se superior a eles, uma idiota superioridade de
quem não morreu, mas podia perfeitamente estar morto, e portanto nesse
caso não teria a menor importância, seria até ridículo de seu ponto de vista
tudo o que se pudesse discutir sobre uma fita de cinema. O mormaço lhe dá
no corpo inteiro um infinito prazer.

Rubem Braga, considerado por muitos o maior cronista brasileiro desde Machado de Assis, nasceu em Cachoeiro de Itapemirim, ES, a 12 de janeiro de 1913.

Saiba mais: http://www.releituras.com/rubembraga_bio.asp

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