terça-feira, 18 de setembro de 2007

Cartas de um sedutor (Hilda Hilst) fragmento do texto

Estou doente. Taco, meu médico e amigo prescreveu champanhe
gelado. Brut. E gelo nas têmporas. E sabes por que estou doente?
Porque pressinto surpresas, notícias inquietantes, vindas não sei de
onde, talvez de ti. (E por outra coisa que já te digo.) Sinto também que
não devemos continuar com as cartas. Te vejo dissimulada, escondendo
algo muito sério. Por que não permites que eu vá até sua casa? O que
guardas aí? De alguma maneira me transformaste num escriba ou
melhor num escrevinhador, e só de saber que tu me pensas escritor
agiganta-me a náusea. Que tipos petulantes! Que nojosos! Esgruvinham
as virilhas, o pregueado, escarafuncham os sórdidos corações, as
alminhas magras, e daí enchem-se de arrotos quando terminam os
textos. Verdade que adoro os livros, mas se pudesse arrancar de mim a
visão dos estufados que os escreveram vomitaria menos o mundo e a
própria vida. Tínhamos um amigo, o Stamatius (!) (eu só o chamava de
Tiu, porque, convenhamos, Stamatius não dá) que perdeu tudo, casa e
outros bens, porque tinha mania de ser escritor. Dizem que agora vive
catando tudo quanto há, é catador de lixo, percebes? Vive num cubículo
sórdido com uma tal de Eulália que deve ter nascido no esgoto. Muitos o
procuram para ajudá-lo. Não quer nem saber. O Tiu quer escrever, só
pensa nisso, pirou, sai correndo de pânico quando vê alguém que o
conheceu. Carrega no peito uma medalha de Santa Apolônia, protetora
dos dentes. Ah, não tem mais dentes. Bonito o Stamatius. Elegante,
esguio. A última coisa que fez antes de sumir por aí foi torcer as bolotas
de um editor, fazê-lo ajoelhar-se até o cara gritar: edito sim! edito o seu
livro! com capa dura e papel bíblia! Só então largou as bolotas e
balbuciou feroz: vai editar sim, mas a biografia da tua mãe, aquela
findinga, aquela léia, aquela moruxaba, aquela rabaceira escrachada
que fodeu com o jumento do teu pai - e quebrou-lhe os dentes com a
muqueta mais acertada que já vi. Quebrou a mão também. Bem, mas
isso não vem ao caso. Ao caso pior: o Kraus morreu. A Cuzinho num
acesso de indignação não só a cause do apelido mas desesperada com
todas as indignidades vindas do Tom, invadiu a casa do Kraus com o
linguão de fora, e alguns dizem que o perseguiu pela casa inteira uma
boa meia hora, escobilhando a comprida. Consta que o Kraus tapava o
aro morrendo de rir literalmente. E acreditas? Morreu. O Tom quer
provar homicídio, quer o testemunho de todos os amigos e dos
terapeutas também, mas quem é que vai acreditar que um cara morreu
de rir só com a ameaça de lhe lamberem o botão? A turma do pólo está
estudando um plano, alguma nefanda crueldade para Amanda. Dizem
que vão lhe enfiar algumas bolas de pólo polpas e pombinha adentro. Se
assim for resolvido manda-me os tocos dos tais ficheiros. Haja bola!
Tom foi medicado na hora do enterro de Kraus porque não suportou ver
o amigo morto e ainda sorrindo. Estou doente por tudo isso e porque
não posso pensar na morte, nem na minha nem na do Kraus nem da
barata, tenho medo da pestilenta senhora e imagino-me puxando-lhe o
grelo, esticando-lhe os pentelhos até ouvir sons tensos arrepiantes. Hoje
gritei demente: vem, Madama, vem, e irado, numa arrancada, soltei da
pestilenta grelo e pentelhos e eles esbateram-se frenéticos nos seus
baixos meios. Se pudesse seduzir a morte, lamber-lhe as axilas, os pêlos
pretos, babar no seu umbigo, enturpir-lhe as narinas de hálitos
melosos, e dizer-lhe: sou eu, gança, sou eu, mariposa, sou Karl, esse
que há de te chupar eternamente a borboleta se tu lhe permitires longa
vida na olorosa quirica do planeta.
Ciao, irmanita.

(Cartas de um sedutor - SP: Paulicéia, 1991.)

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