terça-feira, 18 de setembro de 2007

O gato preto (Edgar Allan Poe)


Não espero nem peço que se dê crédito à história sumamente extraordinária e,
no entanto, bastante doméstica que vou narrar. Louco seria eu se esperasse tal
coisa, tratando-se de um caso que os meus próprios sentidos se negam a
aceitar. Não obstante, não estou louco e, com toda a certeza, não sonho. Mas
amanhã morro e, por isso, gostaria, hoje, de aliviar o meu espírito. Meu
propósito imediato é apresentar ao mundo, clara e sucintamente, mas sem
comentários, uma série de simples acontecimentos domésticos. Devido a suas
conseqüências, tais acontecimentos me aterrorizaram, torturaram e destruíram.
No entanto, não tentarei esclarecê-los. Em mim, quase não produziram outra
coisa senão horror — mas, em muitas pessoas, talvez lhes pareçam menos
terríveis que grotesco. Talvez, mais tarde, haja alguma inteligência que reduza
o meu fantasma a algo comum — uma inteligência mais serena, mais lógica e
muito menos excitável do que, a minha, que perceba, nas circunstâncias a que
me refiro com terror, nada mais do que uma sucessão comum de causas e
efeitos muito naturais.
Desde a infância, tornaram-se patentes a docilidade e o sentido humano de
meu caráter. A ternura de meu coração era tão evidente, que me tomava alvo
dos gracejos de meus companheiros. Gostava,
especialmente, de animais, e meus pais me permitiam possuir grande
variedade deles. Passava com eles quase todo o meu tempo, e jamais me sentia
tão feliz como quando lhes dava de comer ou os acariciava. Com os anos,
aumentou esta peculiaridade de meu caráter e, quando me tomei adulto, fiz
dela uma das minhas principais fontes de prazer. Aos que já sentiram afeto por
um cão fiel e sagaz, não preciso dar-me ao trabalho de explicar a natureza ou a
intensidade da satisfação que se pode ter com isso. Há algo, no amor
desinteressado, e capaz de sacrifícios, de um animal, que toca diretamente o
coração daqueles que tiveram ocasiões freqüentes de comprovar a amizade
mesquinha e a frágil fidelidade de um simples homem.
Casei cedo, e tive a sorte de encontrar em minha mulher disposição
semelhante à minha. Notando o meu amor pelos animais domésticos, não
perdia a oportunidade de arranjar as espécies mais agradáveis de bichos.
Tínhamos pássaros, peixes dourados, um cão, coelhos, um macaquinho e um
gato.
Este último era um animal extraordinariamente grande e belo, todo negro e de
espantosa sagacidade.
Ao referir-se à sua inteligência, minha mulher, que, no íntimo de seu coração,
era um tanto supersticiosa, fazia freqüentes alusões à antiga crença popular de
que todos os gatos pretos são feiticeiras disfarçadas. Não que ela se referisse
seriamente a isso: menciono o fato apenas porque aconteceu lembrar-me disso
neste momento.
Pluto — assim se chamava o gato — era o meu preferido, com o qual eu mais
me distraía. Só eu o alimentava, e ele me seguia sempre pela casa. Tinha
dificuldade, mesmo, em impedir que me acompanhasse pela rua.
Nossa amizade durou, desse modo, vários anos, durante os quais não só o meu
caráter como o meu temperamento — enrubesço ao confessá-lo — sofreram,
devido ao demônio da intemperança, uma modificação radical para pior.
Tomava-me, dia a dia, mais taciturno, mais irritadiço, mais indiferente aos
sentimentos dos outros. Sofria ao empregar linguagem desabrida ao dirigir-me
à minha mulher. No fim, cheguei mesmo a tratá-la com violência. Meus
animais, certamente, sentiam a mudança operada em meu caráter. Não apenas
não lhes dava atenção alguma, como, ainda, os maltratava. Quanto a Pluto,
porém, ainda despertava em mim consideração suficiente que me impedia de
maltratá-lo, ao passo que não sentia escrúpulo algum em maltratar os coelhos,
o macaco e mesmo o cão, quando, por acaso ou afeto, cruzavam em meu
caminho. Meu mal, porém, ia tomando conta de mim — que outro mal pode
se comparar ao álcool? — e, no fim, até Pluto, que começava agora a
envelhecer e, por conseguinte, se tomara um tanto rabugento, até mesmo Pluto
começou a sentir os efeitos de meu mau humor.
Certa noite, ao voltar a casa, muito embriagado, de uma de minhas andanças
pela cidade, tive a impressão de que o gato evitava a minha presença.
Apanhei-o, e ele, assustado ante a minha violência, me feriu a mão,
levemente, com os dentes. Uma fúria demoníaca apoderou-se,
instantaneamente, de mim.
Já não sabia mais o que estava fazendo. Dir-se-ia que, súbito, minha alma
abandonara o corpo, e uma perversidade mais do que diabólica, causada pela
genebra, fez vibrar todas as fibras de meu ser. Tirei do bolso um canivete,
abri-o, agarrei o pobre animal pela garganta e, friamente, arranquei de sua
órbita um dos olhos! Enrubesço, estremeço, abraso-me de vergonha, ao
referir-me, aqui, a essa abominável atrocidade.
Quando, com a chegada da manhã, voltei à razão — dissipados já os vapores
de minha orgia noturna — , experimentei, pelo crime que praticara, um
sentimento que era um misto de horror e remorso; mas não passou de um
sentimento superficial e equívoco, pois minha alma permaneceu impassível.
Mergulhei novamente em excessos, afogando logo no vinho a lembrança do
que acontecera.
Entrementes, o gato se restabeleceu, lentamente. A órbita do olho perdido
apresentava, é certo, um aspecto horrendo, mas não parecia mais sofrer
qualquer dor. Passeava pela casa como de costume, mas, como bem se poderia
esperar, fugia, tomado de extremo terror, à minha aproximação. Restava-me
ainda o bastante de meu antigo coração para que, a princípio, sofresse com
aquela evidente aversão por parte de um animal que, antes, me amara tanto.
Mas esse sentimento logo se transformou em irritação. E, então, como para
perder-me final e irremissivelmente, surgiu o espírito da perversidade.
Desse espírito, a filosofia não toma conhecimento. Não obstante, tão certo
como existe minha alma, creio que a perversidade é um dos impulsos
primitivos do coração humano - uma das faculdades, ou sentimentos
primários, que dirigem o caráter do homem. Quem não se viu, centenas de
vezes, a cometer ações vis ou estúpidas, pela única razão de que sabia que não
devia cometê-las? Acaso não sentimos uma inclinação constante mesmo
quando estamos no melhor do nosso juízo, para violar aquilo que é lei,
simplesmente porque a compreendemos como tal? Esse espírito de
perversidade, digo eu, foi a causa de minha queda final. O vivo e insondável
desejo da alma de atormentar-se a si mesma, de violentar sua própria natureza,
de fazer o mal pelo próprio mal, foi o que me levou a continuar e, afinal, a
levar a cabo o suplício que infligira ao inofensivo animal. Uma manhã, a
sangue frio, meti-lhe um nó corredio em torno do pescoço e enforquei-o no
galho de uma árvore. Fi-lo com os olhos cheios de lágrimas, com o coração
transbordante do mais amargo remorso. Enforquei-o porque sabia que ele me
amara, e porque reconhecia que não me dera motivo algum para que me
voltasse contra ele.
Enforquei-o porque sabia que estava cometendo um pecado — um pecado
mortal que comprometia a minha alma imortal, afastando-a, se é que isso era
possível, da misericórdia infinita de um Deus infinitamente misericordioso e
infinitamente terrível.
Na noite do dia em que foi cometida essa ação tão cruel, fui despertado pelo
grito de "fogo!". As cortinas de minha cama estavam em chamas. Toda a casa
ardia. Foi com grande dificuldade que minha mulher, uma criada e eu
conseguimos escapar do incêndio. A destruição foi completa. Todos os meus
bens terrenos foram tragados pelo fogo, e, desde então, me entreguei ao
desespero.
Não pretendo estabelecer relação alguma entre causa e efeito - entre o desastre
e a atrocidade por mim cometida. Mas estou descrevendo uma seqüência de
fatos, e não desejo omitir nenhum dos elos dessa cadeia de acontecimentos.
No dia seguinte ao do incêndio, visitei as ruínas. As paredes, com exceção de
uma apenas, tinham desmoronado. Essa única exceção era constituída por um
fino tabique interior, situado no meio da casa, junto ao qual se achava a
cabeceira de minha cama. O reboco havia, aí, em grande parte, resistido à ação
do fogo — coisa que atribuí ao fato de ter sido ele construído recentemente.
Densa multidão se reunira em torno dessa parede, e muitas pessoas
examinavam, com particular atenção e minuciosidade, uma parte dela, As
palavras "estranho!", "singular!", bem como outras expressões semelhantes,
despertaram-me a curiosidade. Aproximei-me e vi, como se gravada em
baixo-relevo sobre a superfície branca, a figura de um gato gigantesco. A
imagem era de uma exatidão verdadeiramente maravilhosa. Havia uma corda
em tomo do pescoço do animal.
Logo que vi tal aparição — pois não poderia considerar aquilo como sendo
outra coisa — , o assombro e terror que se me apoderaram foram extremos.
Mas, finalmente, a reflexão veio em meu auxílio. O gato, lembrei-me, fora
enforcado num jardim existente junto à casa. Aos gritos de alarma, o jardim
fora imediatamente invadido pela multidão. Alguém deve ter retirado o animal
da árvore, lançando-o, através de uma janela aberta, para dentro do meu
quarto. Isso foi feito, provavelmente, com a intenção de despertar-me. A
queda das outras paredes havia comprimido a vítima de minha crueldade no
gesso recentemente colocado sobre a parede que permanecera de pé. A cal do
muro, com as chamas e o amoníaco desprendido da carcaça, produzira a
imagem tal qual eu agora a via.
Embora isso satisfizesse prontamente minha razão, não conseguia fazer o
mesmo, de maneira completa, com minha consciência, pois o surpreendente
fato que acabo de descrever não deixou de causar-me, apesar de tudo,
profunda impressão. Durante meses, não pude livrar-me do fantasma do gato
e, nesse espaço de tempo, nasceu em meu espírito uma espécie de sentimento
que parecia remorso, embora não o fosse. Cheguei, mesmo, a lamentar a perda
do animal e a procurar, nos sórdidos lugares que então freqüentava, outro
bichano da mesma espécie e de aparência semelhante que pudesse substituí-lo.
Uma noite, em que me achava sentado, meio aturdido, num antro mais do que
infame, tive a atenção despertada, subitamente, por um objeto negro que jazia
no alto de um dos enormes barris, de genebra ou rum, que constituíam quase
que o único mobiliário do recinto. Fazia já alguns minutos que olhava
fixamente o alto do barril, e o que então me surpreendeu foi não ter visto antes
o que havia sobre o mesmo. Aproximei-me e toquei-o com a mão. Era um
gato preto, enorme — tão grande quanto Pluto — e que, sob todos os aspectos,
salvo um, se assemelhava a ele. Pluto não tinha um único pêlo branco em todo
o corpo — e o bichano que ali estava possuía uma mancha larga e branca,
embora de forma indefinida, a cobrir-lhe quase toda a região do peito.
Ao acariciar-lhe o dorso, ergueu-se imediatamente, ronronando com força e
esfregando-se em minha mão, como se a minha atenção lhe causasse prazer.
Era, pois, o animal que eu procurava. Apressei-me em propor ao dono a sua
aquisição, mas este não manifestou interesse algum pelo felino. Não o
conhecia; jamais o vira antes.
Continuei a acariciá-lo e, quando me dispunha a voltar para casa, o animal
demonstrou disposição de acompanhar-me. Permiti que o fizesse — detendome,
de vez em quando, no caminho, para acariciá-lo.
Ao chegar, sentiu-se imediatamente à vontade, como se pertencesse a casa,
tomando-se, logo, um dos bichanos preferidos de minha mulher.
De minha parte, passei a sentir logo aversão por ele. Acontecia, pois,
justamente o contrário do que eu esperava. Mas a verdade é que - não sei
como nem por quê — seu evidente amor por mim me desgostava e aborrecia.
Lentamente, tais sentimentos de desgosto e fastio se converteram no mais
amargo ódio. Evitava o animal. Uma sensação de vergonha, bem como a
lembrança da crueldade que praticara, impediam-me de maltratá-lo
fisicamente. Durante algumas semanas, não lhe bati nem pratiquei contra ele
qualquer violência; mas, aos poucos - muito gradativamente — , passei a
sentir por ele inenarrável horror, fugindo, em silêncio, de sua odiosa presença,
como se fugisse de uma peste.
Sem dúvida, o que aumentou o meu horror pelo animal foi a descoberta, na
manhã do dia seguinte ao que o levei para casa, que, como Pluto, também
havia sido privado de um dos olhos. Tal circunstância, porém, apenas
contribuiu para que minha mulher sentisse por ele maior carinho, pois, como
já disse, era dotada, em alto grau, dessa ternura de sentimentos que constituíra,
em outros tempos, um de meus traços principais, bem como fonte de muitos
de meus prazeres mais simples e puros.
No entanto, a preferência que o animal demonstrava pela minha pessoa
parecia aumentar em razão direta da aversão que sentia por ele. Seguia-me os
passos com uma pertinácia que dificilmente poderia fazer com que o leitor
compreendesse. Sempre que me sentava, enrodilhava-se embaixo de minha
cadeira, ou me saltava ao colo, cobrindo-me com suas odiosas carícias. Se me
levantava para andar, metia-se-me entre as pemas e quase me derrubava, ou
então, cravando suas longas e afiadas garras em minha roupa, subia por ela até
o meu peito. Nessas ocasiões, embora tivesse ímpetos de matá-lo de um golpe,
abstinha-me de fazê-lo devido, em parte, à lembrança de meu crime anterior,
mas, sobretudo — apresso-me a confessá-lo — , pelo pavor extremo que o
animal me despertava.
Esse pavor não era exatamente um pavor de mal físico e, contudo, não saberia
defini-lo de outra maneira. Quase me envergonha confessar — sim, mesmo
nesta cela de criminoso — , quase me envergonha confessar que o terror e o
pânico que o animal me inspirava eram aumentados por uma das mais puras
fantasias que se possa imaginar. Minha mulher, mais de uma vez, me chamara
a atenção para o aspecto da mancha branca a que já me referi, e que constituía
a única diferença visível entre aquele estranho animal e o outro, que eu
enforcara. O leitor, decerto, se lembrará de que aquele sinal, embora grande,
tinha, a princípio, uma forma bastante indefinida. Mas, lentamente, de maneira
quase imperceptível — que a minha imaginação, durante muito tempo, lutou
por rejeitar como fantasiosa —, adquirira, por fim, uma nitidez rigorosa de
contornos. Era, agora, a imagem de um objeto cuja menção me faz tremer... E,
sobretudo por isso, eu o encarava como a um monstro de horror e
repugnância, do qual eu, se tivesse coragem, me teria livrado. Era agora,
confesso, a imagem de uma coisa odiosa, abominável: a imagem da forca! Oh,
lúgubre e terrível máquina de horror e de crime, de agonia e de morte!
Na verdade, naquele momento eu era um miserável — um ser que ia além da
própria miséria da humanidade. Era uma besta-fera, cujo irmão fora por mim
desdenhosamente destruído... uma besta-fera que se engendrara em mim,
homem feito à imagem do Deus Altíssimo. Oh, grande e insuportável
infortúnio! Ai de mim! Nem de dia, nem de noite, conheceria jamais a bênção
do descanso! Durante o dia, o animal não me deixava a sós um único
momento; e, à noite, despertava de hora em hora, tomado do indescritível
terror de sentir o hálito quente da coisa sobre o meu rosto, e o seu enorme
peso — encarnação de um pesadelo que não podia afastar de mim — pousado
eternamente sobre o meu coração!
Sob a pressão de tais tormentos, sucumbiu o pouco que restava em mim de
bom. Pensamentos maus converteram-se em meus únicos companheiros — os
mais sombrios e os mais perversos dos pensamentos. Minha rabugice habitual
se transformou em ódio por todas as coisas e por toda a humanidade — e
enquanto eu, agora, me entregava cegamente a súbitos, freqüentes e
irreprimíveis acessos de cólera, minha mulher - pobre dela! - não se queixava
nunca convertendo-se na mais paciente e sofredora das vítimas.
Um dia, acompanhou-me, para ajudar-me numa das tarefas domésticas, até o
porão do velho edifício em que nossa pobreza nos obrigava a morar. O gato
seguiu-nos e, quase fazendo-me rolar escada abaixo, me exasperou a ponto de
perder o juízo. Apanhando uma machadinha e esquecendo o terror pueril que
até então contivera minha mão, dirigi ao animal um golpe que teria sido
mortal, se atingisse o alvo. Mas minha mulher segurou-me o braço, detendo o
golpe. Tomado, então, de fúria demoníaca, livrei o braço do obstáculo que o
detinha e cravei-lhe a machadinha no cérebro. Minha mulher caiu morta
instantaneamente, sem lançar um gemido.
Realizado o terrível assassínio, procurei, movido por súbita resolução,
esconder o corpo. Sabia que não poderia retirá-lo da casa, nem de dia nem de
noite, sem correr o risco de ser visto pelos vizinhos.
Ocorreram-me vários planos. Pensei, por um instante, em cortar o corpo em
pequenos pedaços e destruí-los por meio do fogo. Resolvi, depois, cavar uma
fossa no chão da adega. Em seguida, pensei em atirá-lo ao poço do quintal.
Mudei de idéia e decidi metê-lo num caixote, como se fosse uma mercadoria,
na forma habitual, fazendo com que um carregador o retirasse da casa.
Finalmente, tive uma idéia que me pareceu muito mais prática: resolvi
emparedá-lo na adega, como faziam os monges da Idade Média com as suas
vítimas.
Aquela adega se prestava muito bem para tal propósito. As paredes não
haviam sido construídas com muito cuidado e, pouco antes, haviam sido
cobertas, em toda a sua extensão, com um reboco que a umidade impedira de
endurecer. Ademais, havia uma saliência numa das paredes, produzida por
alguma chaminé ou lareira, que fora tapada para que se assemelhasse ao resto
da adega. Não duvidei de que poderia facilmente retirar os tijolos naquele
lugar, introduzir o corpo e recolocá-los do mesmo modo, sem que nenhum
olhar pudesse descobrir nada que despertasse suspeita.
E não me enganei em meus cálculos. Por meio de uma alavanca, desloquei
facilmente os tijolos e tendo depositado o corpo, com cuidado, de encontro à
parede interior. Segurei-o nessa posição, até poder recolocar, sem grande
esforço, os tijolos em seu lugar, tal como estavam anteriormente. Arranjei
cimento, cal e areia e, com toda a precaução possível, preparei uma argamassa
que não se podia distinguir da anterior, cobrindo com ela, escrupulosamente, a
nova parede. Ao terminar, senti-me satisfeito, pois tudo correra bem. A parede
não apresentava o menor sinal de ter sido rebocada. Limpei o chão com o
maior cuidado e, lançando o olhar em tomo, disse, de mim para comigo: "Pelo
menos aqui, o meu trabalho não foi em vão".
O passo seguinte foi procurar o animal que havia sido a causa de tão grande
desgraça, pois resolvera, finalmente, matá-lo. Se, naquele momento, tivesse
podido encontrá-lo, não haveria dúvida quanto à sua sorte: mas parece que o
esperto animal se alarmara ante a violência de minha cólera, e procurava não
aparecer diante de mim enquanto me encontrasse naquele estado de espírito.
Impossível descrever ou imaginar o profundo e abençoado alívio que me
causava a ausência de tão detestável felino. Não apareceu também durante a
noite — e, assim, pela primeira vez, desde sua entrada em casa, consegui
dormir tranqüila e profundamente. Sim, dormi mesmo com o peso daquele
assassínio sobre a minha alma.
Transcorreram o segundo e o terceiro dia — e o meu algoz não apareceu. Pude
respirar, novamente, como homem livre. O monstro, aterrorizado fugira para
sempre de casa. Não tomaria a vê-lo! Minha felicidade era infinita! A culpa de
minha tenebrosa ação pouco me inquietava. Foram feitas algumas
investigações, mas respondi prontamente a todas as perguntas. Procedeu-se,
também, a uma vistoria em minha casa, mas, naturalmente, nada podia ser
descoberto. Eu considerava já como coisa certa a minha felicidade futura.
No quarto dia após o assassinato, uma caravana policial chegou,
inesperadamente, a casa, e realizou, de novo, rigorosa investigação. Seguro,
no entanto, de que ninguém descobriria jamais o lugar em que eu ocultara o
cadáver, não experimentei a menor perturbação. Os policiais pediram-me que
os acompanhasse em sua busca. Não deixaram de esquadrinhar um canto
sequer da casa. Por fim, pela terceira ou quarta vez, desceram novamente ao
porão. Não me alterei o mínimo que fosse. Meu coração batia calmamente,
como o de um inocente. Andei por todo o porão, de ponta a ponta. Com os
braços cruzados sobre o peito, caminhava, calmamente, de um lado para outro.
A polícia estava inteiramente satisfeita e preparava-se para sair. O júbilo que
me inundava o coração era forte demais para que pudesse contê-lo. Ardia de
desejo de dizer uma palavra, uma única palavra, à guisa de triunfo, e também
para tomar duplamente evidente a minha inocência.
— Senhores — disse, por fim, quando os policiais já subiam a escada — , é
para mim motivo de grande satisfação haver desfeito qualquer suspeita.
Desejo a todos os senhores ótima saúde e um pouco mais de cortesia. Diga-se
de passagem, senhores, que esta é uma casa muito bem construída... (Quase
não sabia o que dizia, em meu desejo de falar com naturalidade.) Poderia,
mesmo, dizer que é uma casa excelentemente construída. Estas paredes — os
senhores já se vão? — , estas paredes são de grande solidez.
Nessa altura, movido por pura e frenética fanfarronada, bati com força, com a
bengala que tinha na mão, justamente na parte da parede atrás da qual se
achava o corpo da esposa de meu coração.
Que Deus me guarde e livre das garras de Satanás! Mal o eco das batidas
mergulhou no silêncio, uma voz me respondeu do fundo da tumba, primeiro
com um choro entrecortado e abafado, como os soluços de uma criança;
depois, de repente, com um grito prolongado, estridente, contínuo,
completamente anormal e inumano. Um uivo, um grito agudo, metade de
horror, metade de triunfo, como somente poderia ter surgido do inferno, da
garganta dos condenados, em sua agonia, e dos demônios exultantes com a sua
condenação.
Quanto aos meus pensamentos, é loucura falar. Sentindo-me desfalecer,
cambaleei até à parede oposta. Durante um instante, o grupo de policiais
deteve-se na escada, imobilizado pelo terror.
Decorrido um momento, doze braços vigorosos atacaram a parede, que caiu
por terra. O cadáver, já em adiantado estado de decomposição, e coberto de
sangue coagulado, apareceu, ereto, aos olhos dos presentes.
Sobre sua cabeça, com a boca vermelha dilatada e o único olho chamejante,
achava-se pousado o animal odioso, cuja astúcia me levou ao assassínio e cuja
voz reveladora me entregava ao carrasco.
Eu havia emparedado o monstro dentro da tumba!

Um comentário:

MEIRY ROSA disse...

Qual o tradutor desse conto postado de Edgar Allan Poe?