terça-feira, 18 de setembro de 2007

O vampiro da Alameda Casabranca (Márcia Denser)

A não ser pelo filme japonês em cartaz, não havia nenhum interesse em
sair com aquele sujeito, poeta, que se ostentava como "maldito" só para
poder filar seu canapezinho de caviar nas altas rodas. Um guru de fachada,
meio sobre o charlatão cósmico, adepto que era de uma esotérica seita
oriental, babaca como tantas outras, e usando tudo isso em proveito próprio.
Pelo menos não era burro. Disso resultavam as sessões de massagem transcendental
nas madames com hora marcada, ou mesmo sem ela, ao sabor das
prisões de ventre, dores de corno e outras piorréias. Não era mesmo burro.
Feioso, devia viver faminto de carne fresca mas, passando-se por espiritual,
ia tirando suas casquinhas. A conversa era inconsistente, cheia de expressões
pedantes e, até pela sintaxe, tão emaranhada em meandros que obviamente
não levavam a parte alguma, notava-se a eterna fome do cara. Uma espécie
de vaga ansiedade piedosa de algo que rodeia e rodeia aquilo que seria um
alvo, não tivesse ele em mira outra coisa. Por exemplo: enquanto sua boca
passeava pela evolução da energia cósmica, seus olhos hipnotizavam-se (bem
como toda sua alma) num ponto qualquer entre meus seios, e a energia
cósmica ia e vinha, subia e descia, jamais se perdia, enrolava e se desenrolava,
mas não chegava a nenhum lugar, uma vez que o verdadeiro objeto daquele
papo estéril permanecia fora de alcance. A arenga também seria hipnotizante:
eu me sentia como uma criança birrenta que não quer dormir ou um animal
relutante em cair na armadilha.
O tal filme japonês fora realmente bom, um monumento poético, um
estudo profundo sobre as paixões humanas etc. e assim eu poderia falar sobre
ele ad nauseam, mas o Poeta apenas emitiu suas impressões assim: "É barra!
Que barra! É uma barra!" dizendo-as de maneiras diferentes e empostando
a voz num diapasão enfático que partia da traquéia, explodindo num ruído
seco e rouco, feito um peido bucal, e como se a palavra "barra" contivesse,
não digo o significado de todo o universo, mas, pelo menos, de todo o filme.
Isso no fim da fita. Durante esteve todo o tempo tentando pegar no meu
braço. Um verdadeiro saco. Então eu me perguntava: por que sair com aquele
cara? Era desses feriados tediosos, todos os amigos queridos, todos os sujeitos
interessantes, todas as amigas disponíveis viajando, restando os neuróticos,
os chatos e os vampiros na cidade. Já era uma boa razão. Depois, eu apenas
desconfiava de tudo isso, ainda não configurara uma imagem nítida do Poeta
na minha cabeça. Na hora "H" fica possuída duma puxa-saquice pânica por
agradar, mais preocupada com o efeito que com o objeto propriamente dito.
Posso acabar fascinando Drácula em pessoa, sem dar pela coisa. Daí me livrar
do monstro já é outra história.
Como nesses clássicos de horror, ao sairmos do cinema "um vento
gélido açoitou-nos os ossos". Confesso que não fiquei surpreendida quando
o Poeta sugeriu passarmos no seu apartamento para pegar um pulôver,
coitadinho. Antes tentei aliciá-lo para uma cave de queijos e vinhos, mas ele
não entrou. Também não queria ser grossa ou passar por retró ou sei lá. No
fundo, no fundo, estava querendo ver até onde ia o meu fascínio - e eu sei
onde vai o meu fascínio - com o Poeta. Sabe-se lá.
No apartamento (não fosse pelo excesso de cartazes politicosos, até que
bem jeitoso. Um tanto "artístico-displicente" demais, eu acho, como tantos
outros onde eu estivera, de poetinhas, atores de teatro, bichas, são todos
iguais, deve ser a fada madrinha), eu aproveitei meu fascínio ao máximo.
Munida dos meus trabalhos, submeti o Poeta a uma intermitente sessão de
leitura dos melhores trechos por umas duas horas. Minhas estórias são boas,
mas lidas assim, no tapete, bebendo um bom vinho tinto, um fogo aqui
dentro, ar condicionado, almofadas e mantas peruanas, música suave e um
sujeito querendo me comer ali do lado, não há talento que resista. Então, ele
me submeteu a mais duas horas de suas poesias, aliás inéditas. Se fossem boas
até que valeria o esforço, o fascínio, a atenção fingida (tinha ganas de estourar
de rir cada vez que ele pigarreava, afivelando um ar circunspecto, como se
preparando para ler um discurso, um obituário, um testamento, enfim, algo
muitíssimo sério), o vinho, aquele apartamento, o filme japonês, os feriados,
aquelas profundas crateras que lhe sulcavam o rosto, o ligeiro cheirinho
oleoso e adocicado que se desprendia delas, a mania de falar de si próprio na
terceira pessoa, como se fosse um fantasma, o fato de ser careca de um lado
só, daí o cabelo restante se amontoar num topete atrás da orelha esquerda,
enfim, mas não eram. Não eram mesmo. Ocas, delírios vagos, desconexos,
de um concretismo de cabeça dura e reticências. Na mesma construção e
com a mesma ênfase conviviam vísceras e sangue, cosmos e eternidade, como
se essas palavras não significassem nada além de meros sons poéticos convencionais. Quando a coisa começava a esquentar, ele sempre botava as tais
palavras definitivas como Deus, Espaço, Eternidade, Morte, e esquecia as
preposições, tornando tudo assim delirantemente obscuro, como se possuísse
uma chave, um código para a sua decifração. Para os leigos, as garotas bonitas
e os novos-ricos quanto menos se entende, mais a coisa deve ser boa. Palavras
bonitas é igual a idéias bonitas. E gongórico, é elementar. O Poeta conhecia
muito bem esse princípio e aplicava-o até à exaustão. A minha, por exemplo.
Na verdade, algumas eram até sofríveis, mas parece que o sujeito tinha um
cadeado no cérebro. Estava prisioneiro. Não se enfrentava. E se começava a
botar a mão na merda, lá vinha ele com seus deuses e demônios anti-sépticos,
para lavar todos os pecados. Pelo menos os dele. Se achava que os tinha. Ser
feio, por exemplo, era um. Equilibrava-se definindo-se "pedante e sofisticado".
Supunha-se, dessa forma, inacessível. Enganava só os trouxas.
Na conversa, Poeta mencionou uma festa. Amigos intelectuais etc.
Então vamos, me animei, e fui emergindo das almofadas, procurando as
botas debaixo do sofá, espantando cobertores, relanceando um olhar melancólico
para as garrafas vazias, mas ele me reteve. Ainda não, disse, fixando-me
um olhar tigrino cor de petróleo. Era como um aquário, a exposição, atrás
do vidro córneo, do que havia no interior de suas espinhas mortas: óleo diesel.
O pequeno deus Caracol, o deus dos covardes, deve habitar em mim,
pois foi ele que me fez encolher, puxando consigo todas as terminais nervosas,
todas as sensações de prazer e dor, toda alegria, todo pranto, e me transformar
num penhasco árido, num terreno baldio entregue às varejeiras, aos cacos de
vidro, lixo, mato ralo, aos cães vira-latas, e aos teus beijos, Poeta.
Uma zoeira distante no ouvido, uma sensação incômoda nas costelas,
a boca seca, avisaram-me que bastava. Fui me desprendendo aos poucos.
Tarefa, aliás, bastante embaraçosa. Eu diria hilariante, se não fosse parte ativa.
Parecíamos atores de um filme do Harold Loyd. Eu puxando de cá, ele de
lá. Um escorregão providencial da minha parte (estávamos em pé) decidiu a
contenda. Fomos à festa.
A primeira coisa que chamou minha atenção foi que o dono da casa - por sinal, um belíssimo rapaz - usava, atadas na manga da camisa, duas fitas
de seda nas cores da bandeira nacional. Assim como os rapazes da TFP, a
juventude de Hitler, os pupilos de Mussolini. Como um ungido, a marca da
distinção, do bem-nascido, bem-dotado, bem rico, a nata, a perfeição e vocês
fora! E viva Nietzsche e o quarto Reich, logo, o General Pinochet, Idi Amin,
Pol Pot, Gengis Khan e o Golpe de 64. Puxei-o pela manga: O que é isso?
Sorriu com seus olhos azuis de água doce: Não é um belo país? É. Olhei a
mesa: vinhos franceses, queijos suíços, baixela húngara, guarnições de renda
austríaca, charutos cubanos, vodca russa, cigarros americanos. Belíssimo país.
Belo mesmo é você, pensei cinicamente, cobiçando a belezinha de jovem
fascista e seus brinquedinhos, entre eles uma linda esposa loura e psicóloga
formada pelo período da tarde do cursinho Objetivo, altura e peso ideais
segundo a Revista Cláudia e preocupadíssima com seus encargos de anfitriã
(repetiu neuroticamente a noite toda que "a previsão falhou" a propósito de
haver terminado o queijo de nozes antes das duas da matina). E os intelectuais?
Da "festa" constavam exatamente dez pessoas. Além dos anfitriões, eu
e o Poeta/Profeta, havia um outro casal composto de um sujeito enorme,
estilo Cro-Magnon, filho de general, com o curioso nome de Ciro, faixa
preta em caratê e que me foi apresentado como um pintor maravilhoso,
porém desiludido (o pessoal devia ser positivamente cego) e cocainômano
ativo, acompanhado por uma garota misto de Dama das Camélias e Madrasta
da Branca de Neve: profundas olheiras azuladas, cabelos crespos e negros
acentuando oleosamente o rosto pálido, ossudo, lunar, quase transparente,
usando uma camisa branca também transparente (seios nada transparentes)
sem sutiã, a chamar atenção de todos para os seus pés feridos pelas sapatilhas.
Bailarina? Não sei. A cidade está cheia desses cursinhos de balé e bordado,
freqüentados por jovens em idade de casar e manter a forma. Para compensar
as festinhas movidas a vinho, coca e mau humor de suas excelências, seus
namorados, pelos quais elas são capazes de se foder por toda a eternidade,
em troca de um sobrenome enganchado no rabo e um apartamento nos
Jardins: os homens têm as angústias, as mulheres, os interesses, e por ai vai.
Roger, o intelectual oficial, amigo do Poeta de proveta, um sujeitinho
magricela, insignificante (essa palavra é enorme!), apagado na minha memória,
acompanhava uma cooperante do governo americano junto ao Brasil,
uma garota da Califórnia com cara de porto-riquenha. Ela deveria detestar
aquela cara tropical, a pele morena, cabelos negros cortados rente, como se
pagando uma pena, os olhos escuros feito morcegos assustados, encolhidos
no fundo da fisionomia. Que fazer se sua mãe havia pulado o muro do
México? Roger, o colonizado, desmanchava-se em atenções para com o
produto de Tio Sam, mas eu imagino que, para ele, bastaria qualquer coisa,
uma lata de sopa Campbell, digamos. Que representasse a civilização, a
cultura superior etc. Razões inconfessáveis. Não via nela apenas uma garota
assustada num país estranho. Assim como eu não enxergava o aspecto
repugnante do meu guru-poeta. Tampava o nariz, os olhos, a boca, e o
engolia em nome de uma vaidade idiota. Presentes também um par de primos
dentuços e noivos que se despediu cedo. Eu aposto que pra ver televisão e se
agarrar no sofá.
A madrugada evoluiu naquele apartamento neoclássico, com ativa
movimentação de garrafas de vinho, rodadas de cocaína, camembert rançoso
e conversas idiotas. Já estava amanhecendo e restavam os donos da casa, Ciro,
Branca de Neve, Poeta e eu, já me sentindo completamente onipotente.
Sentimento provavelmente compartilhado por todos, uma vez que a conversa girava sobre vida extraterrena, enquanto Brinquedinho raspava com uma
pazinha de sorvete os restos de pó grudados no bumbum da garota na capa
da revista Playboy. Excelente anfitriã. Belo Fascista inquiria o Poeta:
- Você, Klaus, que é um cara ligado nessas coisas, e entende pacas, já
deve ter tido revelações, não?
- Bem, começou o outro, pode-se dizer que nós (falava sémpre no
plural, aludindo estranhamente uma cumplicidade invisível. Quem sabe
com os deuses) chegamos a fazer vários contatos realmente inexplicáveis, eu
diria, por exemplo, quando morreu a Dorinha...
- A Dorinha não morreu, trovejou Ciro, olhos vidrados numa faca
de cortar frios.
- Talvez sim, talvez não, condescendeu misteriosamente Klaus, muitos de nós já chegaram a...
- Besteiras, não há nada, cortei. Estive lá em cima e vi: estão todos
mortos. E voltando-me para o meu anfitrião: Um trechinho de seu autor
predileto, beleza...
- Como? - Belo Fascista arregalava os doces olhos azuis.
- Ela divaga - Poeta endereçou-me um olhar enviesado, - mas
como eu dizia, a Dorinha...
- Agora que estou vendo, interrompi novamente. De repente, Ciro e
Branca de Neve me pareceram estranhíssimos: ele enorme, truculento, ela
frágil, meio amalucada...
- Vocês não têm nada a ver, não é? Sorria para ambos como abençoando-os. Klaus, desorientado, arreganhava os dentes, desculpando sua convidada.
- Terrível, terrível, arfava Branca de Neve.
- Pensando bem, acho que a garota tem razão, Ciro não tirava os olhos
da faca.
- E como é que vocês tre... Um violento cutucão do Guru, debaixo
da mesa, fez-me engolir o resto da frase.
Depois disso, fui mergulhando cada vez mais fundo num burburinho
ácido e esbranquiçado. As frases se sucediam de cá para lá, e eu as acompanhava
como bolinhas num jogo de ping-pong, apenas como bolinhas, que
não são nada além de bolinhas brancas.
Levantei-me e fui até a janela: É isso, pensei, sufocar a ressaca, afogá-la
na boca cinzenta e azeda da manhã como num cesto de roupa suja. Esse é o
preço pago pela droga consumida durante a madrugada, porque a droga tem
o segredo que afoga a náusea, o vômito, a acidez desse vinho escuro injetado
nas veias desde a noite anterior, então, ao amanhecer, foi puxada a descarga,
sentido um só tranco, o estômago a brecar e a gemer no alto de um prédio
no Pacaembu e isso foi quase tudo. Quase porque eu ainda não terminara.
Porque o vazio, após a descarga, é insuportável. O vaso sanitário fica deserto
e se tem medo de tornar a usá-lo e infectar o mundo inteiro. A náusea que
se instala expulsa a razão, amedronta as palavras, e eu precisava falar que
daquela madrugada ficou um gosto arrepanhado de sal de frutas, a efervescência
cinza-pérola do antiácido diante dos olhos e uma tristeza secreta e
corrompida por me saber mole, dobrável, e ainda uma vez voltar a fazer coisas
que não quero, não preciso, não desejo, todavia o álcool e a droga me levam
lá, uma espécie de morte incluída nos serviços de buffet; a cada episódio eu
morro, e eu morro, e eu morro de novo, e volto a me assassinar, porque
contar essa estória é o mesmo que atacar a mesma mulher há anos, violentamente,
por trás, e como se ela fosse virgem, então, o toque no ombro, o hálito
amanhecido às minhas costas: Klaus. Haviam escurecido a sala. Silenciosamente, colocou-me o casaco e, na condição de irmãozinho mais velho,
carregou-me para longe daqueles perigos. Seu apartamento, por exemplo.
Lembro de um café da manhã numa mesa com toalha de plástico, e um
enorme queijo de Minas. Eu estava chapadíssima, achando o queijo muito
engraçado e porque não podia aparecer em casa de modo algum naquele
estado. Klaus, este então parecia esmagado sob o peso da recompensa. Ele
tinha mesmo uma cara amassada de vilão do faroeste depois da última briga,
versão piorada entre Jack Palance e John Carradine. Cara picada pelo
ressentimento e pela varíola, obtinha dormir com a mocinha sem mais
aquela. Era demais. Ele vai broxar, pensei.
Havia sol, mas estava frio e úmido e o Poeta, muito solícito, uniu duas
camas gêmeas, cobriu-as com mantas, enquanto eu me despia, obedientemente, cumprindo um ritual sem escapatória, filha de Maria, sacerdotisa de
Astarté, coroinha alimentado e fodido secretamente pelo padre, eu obedecia,
apenas. Fiquei de bruços, fechei os olhos, pensando: o prazer puro, o prazer
puro. Não poderia ver aquele rosto agora, seria insuportável, seria inconcebível,
e eu acho que ele me ficou agradecido. Mesmo assim não conseguia.
Estava submerso em droga e álcool, uma chaga viva de excitação que pulsava
e gemia, rilhando os dentes, pobre animal sonâmbulo imaginando-se um ser
humano de carne, ossos e fezes, se esvaindo entre minhas nádegas numa
tortura aplicada de movimentos ineficientes; uma vez que ele não conseguia,
o animal depositava-se como um pedaço morto de carne fria junto ao meu
corpo. Vamos liquidar isso, pensei. Sentia-me cansada, nauseada, azeda. A
excitação esticava-se como um cordão frouxo contudo sem arrebentar. Vi
pela janela a manhã alta, cor de magnésia, e disse: chega, vamos dormir. às
minhas costas, ele desabou, barraquinha de campanha, como se o tempo
todo estivesse aguardando a ornem que o libertasse da prontidão. Segundos
depois ressonava eloqüentemente. Adormeci pensando onde havia me metido,
aquele apartamento de solteiro da Alameda Casabranca tinha algo a ver
com um túmulo, gente adormecendo ao nascer do sol, falta só o punhal de
prata, mas, por alguma razão maluca, não queria ir para casa e não queria
ficar ali. O sono me colocou no lugar certo. Estaria sonhando com um
jardineiro espanhol ou com tesouras, não sei, e acordei salgadamente sentindo
algo vivo se mover, quente e alerta, entre minhas coxas. Pulei da cama,
como se impulsionada por retrofoguetes: fugir, pensava, fugir, correr, vomitar,
se vestir. E fui apanhando os destroços das roupas atiradas pelo quarto.
Ao subir as meias, espiei com o canto do olho a cara atônita, amassada de
Klaus, parecendo um pedaço carbonizado de casca de árvore na brancura de
areia dos lençóis. A boca entreaberta não ousava protestar, articular nenhum
som, com aquele ar de bagre estúpido, aquele ar de fóssil humano: a qualquer
palavra minha, viria a réplica de bernardo-eremita na voz de fariseu sufocado
e eu não queria deixar nada claro. A coisa, naquele pé, já parecia suficientemente
ridícula, uma pornochanchada sinistra: ele, de pau duro debaixo das
cobertas, cara de idiota, observando a mocinha se vestir num desespero
vertiginoso, como se perseguida por Jack, o Estripador. Faltava vestir o casaco
e me lancei para fora do quarto. Uma empregada velhíssima e cheia de varizes
abriu-me a porta da rua. Desci pelas escadas. Nem cogitei estar no 152 andar.
Alcançando finalmente a rua, parei ofegante. Porra, estava livre. Leve. Livre.
Comecei a rir sozinha: até que fora bem gozado. Cambaleante e feliz, ri por
dois quarteirões. As pessoas se voltavam, espantadas. Um perfume de
pãezinhos frescos me atraiu para uma padaria cheia de colegiais e
empregadinhas.
Mastigando um enorme sanduíche de presunto, pedi ao vendedor a
lista telefônica. Forrando página por página com lascas de pão fresco,
procurei o número do Belo Fascista. Não sabia por quê, mas precisava salvar
a noite. Alô, uma vozinha sonada gemeu do outro lado. Reconheci
Brinquedinho. Escute, princesa, falei, diga ao seu marido que preciso fazer
uma substituição (era necessário ir direto ao assunto, nada de formalismos
idiotas com a família e os cachorros. Tratamento de choque). O quê? A voz
prosseguia estremunhando. Uma outra, de homem, metralhava abafadamente
qualquer coisa. Era seca e urgente, falando aos soquinhos parecia
martelar ordens. Brinquedinho explicava confusamente algo sobre a namorada
de Klaus e uma substituição. Afinal, era uma objetiva formada pelo
Objetivo. O que está havendo? Belo Fascista pegara o aparelho. Parecia um
bocado irritado. Expliquei da melhor forma. Por fim, convidei-o para tomar
café da manhã comigo, ali, na Padaria Flor de Lys, que ficava na rua... Pedi
para esperar na linha enquanto ia ver. Quando retomei o fone, apenas o ruído
de discar respondeu melancolicamente ao meu apelo. Belo Fascista não tinha
mesmo nenhum senso de humor. Tão bonitinho, murmurei cheia de pena.
O pão terminara e enquanto esperava o troco, espiei meu rosto no espelho
da balança. Borrado de rímel preto, o rouge coloria mais a face esquerda,
olheiras azuladas. Igualzinha Branca de Neve. Esfregar o dedo acentuou a
palidez, mas servia. Ainda não dava para espantar as crianças. Na saída, resolvi
comprar outro sanduíche para ir comendo no caminho. Esquentara e eu
amarrei o casaco na cintura - um casaco lindo, de veludo caramelo - e o
pessoal continuou me encarando. Sempre comendo o pão, fui subindo a rua
cheia de árvores verdinhas e rendilhada de sol. Lembrei de uma passagem de
Faulkner no Som e a Fúria. Afinal, alcancei a Avenida Paulista suando e
arrotando salame. Em frente a Casa Vogue - que não é mais a Casa Vogue
- tentei pegar um táxi. Nada. Decidi ir andando. Até o Paraíso são quatro
quilômetros, mas no plano. Achei razoável. Entrei no Jardim do Trianon.
Um pouco de ar puro, pensei, ecologia, patos, marrecos, galinhas, desocupados.
Ecologia. Comprei um saquinho de pipoca. Um garoto de seus 17
anos atirava farelo aos perus - detesto esse ar superiormente abestalhado
que têm as aves em geral - e perguntei a ele se valia atirar pipoca. Lógico,
disse, e enfiando a mão no meu saquinho, retirou um punhado e atirou-o
aos bichos. Era um encanto de garoto, um ninfeto dos bosques, cabelos
alourados de sol e piscina de clube, a camisa xadrez aberta exibia o peito liso,
moreno e uma medalhinha de San Genaro. Perguntei se era italiano. Meu
pai, respondeu sorrindo. Falava com simplicidade e delicadeza. Como se
fosse a coisa mais natural do mundo topar num domingo com uma garota,
às onze da manhã, cara toda borrada de pintura, casaco de veludo amarrado
nos quadris, um pão semicomido na mão, um saco de pipoca na outra. Ele
era a própria manhã: jovem, fresco, belo, puro. Me senti mal. Queria lavar
o rosto, tomar um banho, convidá-lo a passear comigo no Ibirapuera, que é
o maior parque que eu conheço, sei lá onde. Melhor ir andando. Ele ficou
olhando eu me afastar com simpatia, assim, também sem perguntar nada.
Uma névoa de cansaço descia sobre o jardim. Senti-me longe, minha casa
longíssima, o apartamento de Klaus ainda mais longe, em outro país, outro
tempo. Ajeitei-me num banco de pedra limosa e dormi. Um segundo depois
acordei: alguém me cutucava as costas com um objeto duro e pontudo. Outra
vez, pensei. Mas era só uma vassoura e o homem devia ser o zelador do
parque. Percebi vagamente que anoitecia.
- Levaram sua bolsa e seu casaco, dona, é bom dar parte na polícia,
falava com uma voz monótona, anasalada, repetindo sempre sobre o roubo
e a polícia.
- Pra que a vassoura?, murmurei idiotamente, ainda aturdida pelo
sono. O corpo dolorido. Meu casaco e a bolsa?
- Você tá mal, hein? Deu moleza, já viu, nego passa a mão mesmo,
acho bom dar parte na...
-Já vou, já vou. Como fazê-lo calar? Estiquei as pernas. Intactas ainda
minha calça de veludo e a camisa de seda. Bem, foi-se, pensei. No que deu
o vampirismo poético. Judas, o obscuro, estaria agora em seu lindo apezinho
ouvindo Beethoven e jantando carneiro ensopado com legumes, preparado
por Lady Varizes, a copeira. Aquela cara amassada, descomposta, mastigando
a sobremesa, aqueles olhos duros, machucados, e o animal adormeceria
tranqüilamente entre seus panfletos comunistas, fumando cigarros mentolados.
Era demais. Vomitei espasmodicamente num canteiro de hortênsias.
Resolvi voltar para casa. Lá pagariam o táxi. Então lembrei: estavam todos
viajando. Todos os amigos, todos os sujeitos, todas as amigas etc. Eu estava
sem a bolsa, sem as chaves, com frio, fome e precisando de um banho. No
táxi, suspirando, dei o endereço de Klaus.

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