segunda-feira, 17 de setembro de 2007

A Árvore (Hans Christian ANDERSEN )

ERA uma vez um menino que se resfriara. Saíra e molhara os pés; ninguém pôde compreender como, pois o tempo estava seco. Sua mãe o despiu, vestiu-lhe uma roupa quente e mandou trazer a chaleira com água fervendo, para preparar-lhe um chá que o aquecesse. No mesmo instante se apresentou na porta o velho homem engelhado que morava no alto da casa. Vivia sozinho, pois não tinha nem esposa nem filhos; mas gostava muito de crianças e sabia tantos contos e estórias, que era um prazer ouvi-lo.
- Agora beba o seu chá - disse a mãe. - Talvez depois disso o tio lhe conte uma estória.
- Sim, e eu sei muitas estórias novas! - replicou, balançando a cabeça.
- Mas onde foi que o pequeno molhou os pés? - perguntou em seguida.
- E' verdade, onde foi? - replicou a mãe. - E' inconcebível.
- Diga-me, você pode me dizer exatamente, pois eu preciso saber, que profundidade tem o rego, lá embaixo, na rua onde fica a sua escola?
- justamente a altura das botinas disse o menino. - Mas é preciso ir ao grande buraco.
- Pronto! pronto ... Foi aí mesmo que você molhou os pés - disse o velho. - Agora eu gostaria de contar-lhe uma estória, mas acontece que não me lembro mais.
- Oh! 0 senhor bem poderia inventar uma - disse o menino. - Mamãe sempre diz que tudo o que o senhor vê se transforma em um conto e que tudo aquilo em que o senhor toca é motivo para uma estória.
- Sim; mas essas estórias e esses contos não valem nada. Os bons geralmente vêm por eles mesmos. Batem na minha cabeça, dizendo: "Aqui estou!"
- E agora está batendo um? - perguntou o menino.
A mãe sorriu. Lançou as folhas de chá na chaleira e jogou por cima a água fervente.
- Conte, conte!
- Sim, uma estória deve aparecer. Mas as que valem a pena não aparecem quando se deseja. Mas, atenção - disse de repente. Aqui está uma: embaixo da chaleira.
0 menino olhou para a chaleira. A tampa se levantava aos poucos; as folhas do chá apareciam; grandes e longos galhos se estenderam. Formou-se uma árvore que cobriu o leito deixando seus galhos em volta. Que flores e que perfume! No meio da árvore estava sentada uma simpática e velha mulher, trajada com uma roupa extraordinária, verde como as folhas da árvore e ornada com grandes lilases brancos. Não se podia distinguir à primeira vista se era artificial ou se as flores e as folhagens eram vivas.
- Como se chama essa dama? perguntou o menino.
- Os romanos e os gregos, respondeu o velho, chamavam-na de "dryade". Mas nós não usamos mais essa palavra. Atualmente temos para ela um novo nome; vamos chamá-la de Mamãe-Lilás e é ela que agora lhe chama a atenção. Ouça e examine a árvore atentamente.
Lá embaixo, nos n o v o s bairros, havia uma árvore igualmente grande e florida. Crescia no canto de um recinto bastante pobre. E numa linda tarde de sol, duas pessoas idosas estavam sentadas sob a árvore. Tratava-se de um velho marinheiro e sua velha, velha esposa. já eram avós e deviam festejar dentro em pouco as suas bodas-de-ouro, mas não se lembravam da data exata. Mamãe - Lilás estava sentada na árvore e olhava para eles com ar satisfeito.
- Pois eu sei muito bem quando serão as suas bodas-de-ouro, disse ela.
Mas eles não a ouviram; falavam de seus velhos tempos.
- Você se lembra, disse o velho marinheiro, quando nós éramos muito pequenos, quando brincávamos e corríamos? Era no mesmo lugar onde estamos sentados agora. Nós plantamos pedaços de madeira na terra para fazer nosso jardim.
- Sim, respondeu a velha. Lembro-me muito bem. Regávamos os pedaços de madeira e um deles, um galho de lilás, criou raízes, cresceu e transformou-se na bela árvore sob a qual estamos sentados agora.
- Exatamente, retrucou ele. E lá embaixo, naquele canto, havia uma bacia, onde flutuava o meu barco. Eu mesmo o construíra. Como ele navegava bem! Mas eu devia conhecer a navegação de uma outra maneira!
- Sim, mas antes nós fomos à escola para nos instruirmos. Depois fizemos a primeira comunhão e choramos muito. Depois do almoço, de mãos dadas, subimos ao campanário redondo e nos embriagamos com a vista de Copenhague e o mar. A seguir, fomos até Friedrichsberg, onde o rei e a rainha passavam, em seu barco soberbo, pelos canais.
- Logo ele me mandaria v i a j a r por países distantes.
- Sim, muitas vezes eu chorei por sua causa, interrompeu ela. Pensava que você tivesse morrido e que repousasse no fundo das águas. Passei muitas noites acordada, a fim de ver se o cata-vento girava. Ele girava m u. i t o bem, mas você não voltava. Lembro-me muito bem de que um dia chovia a cântaros e a carroça do lixo parou diante da porta de meus patrões. Desci com a lata do lixo e fiquei parada na porta. Fazia um tempo horrível lá fora! Então o cocheiro entregou-me uma carta. Uma carta sua. Como ela viajara! Abri-a apressadamente e a li; eu ria e chorava, pois estava muito contente. Fiquei sabendo que você estivera nos países quentes, lá onde crescem os cafezais. Que beleza devia ser. Você narrava uma porção de coisas, eu o via com a minha imaginação, enquanto a chuva continuava a cair sem parar, De repente, alguém surgiu e me agarrou pela cintura ...
- A quem, como recompensa, você deu uma bela bofetada.
- E eu podia lá saber que se tratava de você? Você chegou juntamente com a carta. E estava tão lindo! ... Mas o é sempre. Estava com, um lenço amarelo de seda. Usava um chapéu branco novo, que lhe assentava muito bem. Mas, meu Deus, que tempo fazia e que aspecto tinha a rua!
- A seguir - continuou ele - nós nos casamos. Você se lembra? E os filhos que tivemos, a pequena Marrei, Niels, Pierre e Jean-Chrétien?
- Sim, eles cresceram e se tornaram pessoas amadas por todos.
- E eis que tiveram filhos por sua vez! E' a boa semente. Parece-me que foi nesta estação que nós nos casamos.
- Sim, é justamente hoje o dia de comemorarem as suas bodas-de-ouro, - disse Mamãe-Lilás passando sua cabeça entre os dois velhos.
Mas estes dois a tomaram por uma vizinha que lhes dava bom dia. Fitaram-se e estenderam suas mãos enlaçadas. Logo depois chegaram seus filhos e netos, que sabiam muito bem que era o dia das bodas-de-ouro e já os haviam cumprimentado pela manhã. Todavia, ao mesmo tempo em que se lembra de acontecimentos passados, eles se haviam esquecido dessa circunstância. 0 lilás brilhou mais forte, e o sol, que se deitava, veio iluminar o velho casal bem no rosto. Eles tinham, todos dois, as faces coradas e o menor de seus netos dançava em volta deles, gritando de alegria pois nessa noite haveria uma grande festa e eles teriam batatas-doces quentes. Mamãe-Lilás, na sua árvore, abaixa a cabeça e gritava "urra" junto com os outros.
- Mas isso não é um conto - interrompeu o menino, dirigindo-se ao narrador.
- Você pode achar que não - replicou o velho. - Mas vamos interrogar Mamãe-Lilás a esse respeito.
- Não é um conto, realmente - disse Mamãe-Lilás - mas vai chegar um. 0 conto mais extraordinário, nascido da realidade; se assim não fosse, uma árvore tão grande não poderia sair de uma chaleira.
Tirou o menino do leito e apertou-o contra o peito. Os galhos, cobertos de flores de cima abaixo, se fecharam sobre eles e ambos se acharam na mais espessa folhagem. Esta voou com eles pelos ares. Foi tudo incomparavelmente lindo. Mamãe-Lilás se transformou de repente numa linda jovem, vestida com o mesmo traje verde, ornado das flores claras que Mamãe-Lilás usava. Levava no colo uma
verdadeira flor de lilás e uma coroa de lilases em volta de seus cabelos cacheados, de um louro-escuro. Seus olhos eram grandes e belos. Era um prazer fitá-la. A menina e o menino trocaram um beijo; eram da mesma idade e cheios da mesma alegria.
De mãos dadas, saíram da folhagem. Estavam agora no belo jardim florido de sua pátria. Sobre a relva fresca estava a bengala do pai. Para as crianças, essa bengala era viva. Quando se puseram a cavalo sobre ela, o seu cabo polido se transformou numa bela cabeça. Uma longa crina ali flutuava; quatro pernas finas e fortes apareceram: o animal era forte e fogoso. Partiram a galope em volta da relva.
- Agora nós estamos bem longe - disse o menino: - no castelo onde estivemos o ano passado.
E eles rodavam em volta do prado, e a menina que, como todos sabemos, não era outra senão Mamãe-Lilás, gritava sem parar:
- Aqui estamos na região. Você está vendo aquela casa de campo que parece um ovo gigantesco? 0 lilás deixou cair seus ramos para baixo; o galo caminhava orgulhosamente catando a terra a fim de arranjar alimento para seus filhotes. Veja como ele incha o peito Agora estamos perto da igreja. Está no alto da montanha, à sombra dos grandes carvalhos que estão com as folhas meio secas. Agora estamos diante da forja: o fogo queima e os homens seminus batem com seus martelos, fazendo voar as faíscas que formam estrelas. Para a frente! A caminho do belo castelo!
E tudo o que dizia a menina, a cavalo na bengala atrás dele, desfilava aos seus olhos. 0 menino via tudo isso; no entanto, não estava mais do que galopando em volta da relva. A seguir eles brincaram numa alameda transversal e construíram um pequeno jardim. A menina apanhou as flores de lilás que levava nos cabelos e as plantou. E elas cresceram, como acontecera ao velho de que haviam falado, quando ainda eram crianças e se divertiam nos novos quarteirões. Assim como eles, deram-se as mãos. Mas eles não subiram ao campanário vermelho, nem foram até o parque de Friedrichsberg. Não, a menina segurou o menino- pela. cintura e eles voaram para longe, por toda a Dinamarca. Chegou a primavera, depois o verão, depois o outono e o inverno. Mil imagens se refletiam nos olhos
Partiram a galope em volta da relva.
e no coração do menino. E a menina não cessava de lhe dizer: "Não se esqueça nunca." Durante todo o tempo do vôo, o lilás espalhava o seu perfume suave e penetrante. 0 menino sentia bem o odor das rosas e das outras flores, mas o do lilás era ainda mais inebriante; é que as flores pendiam do coração da menina, sobre o qual o pequeno doente apoiava sempre a cabeça.
- Aqui a primavera é magnífica disse a menina. Acabavam de chegar a um bosque de faias. A seus pés espalhava o perfume e as anêmonas rosa-claro brilhavam sobre o verde das folhas. "Oh! não existe primavera mais perfumada do que na floresta de faias dinamarquesas!"
- Aqui a primavera é magnífica! - disse ela. Passavam diante dos antigos castelos do tempo dos cavaleiros. Os muros vermelhos e as torres pontudas refletiam-se nos fossos onde nadavam cisnes e tinham o aspecto de velhas árvores. 0 trigo, nos campos, ondulava como um mar em movimento; flores vermelhas e amarelas balançavam-se na relva; e à noite, quando a lua aparecia, muito branca, era tudo mais lindo ainda. "Não se esqueça nunca!"
- Aqui o outono é magnífico - disse a menina. - 0 céu fica duas vezes mais alto e duas vezes mais azul; a floresta toma os coloridos mais lindos, vermelhos, amarelos e verdes; os cães-de-caça se abraçam; os pássaros selvagens voam em conjunto, gritando, sobre as antigas ruínas de pedra. Por todo canto, sobre o mar azul-escuro, aparecem as velas brancas; e nas fazendas, as velhas mulheres, as moças e as crianças pisam as uvas nos grandes tonéis. Os jovens cantam, os velhos contam estórias de mágicos: "Não se pode imaginar coisa melhor!"
- Aqui, o inverno é magnífico - disse a menina. - Todas as flores ficam cobertas de geada, parecendo feitas de coral branco. A neve estala sob os pés, com se tivéssemos botas novas. No céu, as estrelas cadentes caem uma após outra. Dentro das casas, a árvore de Natal se ilumina; existem presentes; a alegria e a Lua lançava luz prateada por todos os lados. E mesmo a criança mais pobre reconhece: "E' magnífico, no inverno."
Sim, era magnífico e a menina mostrava tudo ao menino. 0 lilaseiro espalhava sempre o seu perfume e continuava a flutuar a bandeira vermelha de cruz branca, a bandeira sob a qual o velho marinheiro partira para distantes países. Depois o menino tornou-se um homem, quis partir para o vasto mundo, para longe, onde ficam os países quentes onde se plantam os cafezais. No momento da partida a jovem apanhou uma flor de lilás do seu peito * entregou-a para guardar. Ele colocou-a no seu livro de preces. E, de cada vez que ele o abria, no estrangeiro, seu olhar caía na página onde se encontrava a flor da recordação. Quanto mais a olhava, mais ela revivia. Ao mesmo tempo, ele respirava o odor de sua pátria, e, entre as pétalas, via distintamente a menina que o fitava com seus olhos claros. E a ouvia murmurar:
- Aqui, é esplêndido na primavera, no verão, no outono e no inverno.
E centenas de imagens passavam por seus olhos.
Muitos anos se passaram. Agora ele era um homem velho que, ao lado de sua esposa, estava sentado sob uma árvore em flor. Davam-se as mãos, como o avô e a avó tinham feito, nos bairros novos; falavam também dos tempos passados e de suas bodas-de-ouro. A menina dos olhos azuis, dos lilases nos cabelos, estava sentada no alto da árvore, e, debruçando a cabeça para eles, dizia:
- E' hoje o aniversário de seu casamento.
Depois tomava duas flores de sua coroa e dava-lhes um beijo. As flores começavam a brilhar como a prata, depois como o ouro, e quando ela as pousou na cabeça dos velhos, cada uma delas se transformou numa coroa de ouro. Estavam os dois sentados, como um rei e uma rainha, sob a árvore perfumada que se parecia com um lilaseiro. Ele contava à sua velha esposa a estória de Mamãe-Lilás, tal como ouvira quando era menino; e parecia-lhes que era muito parecida com as circunstâncias vividas por eles próprios. E era isso que mais lhes agradava.
- Sim, é isso - disse a menina da árvore. - Uns me chamam de Mamãe-Lilás, outros de "dryade"; afinal, eu me chamo Recordação. Sou eu que estou sentada na árvore que floresce todos os dias. Tenho uma vasta memória e sei contar lindas coisas! Deixe-me ver se você ainda tem suas flores?
0 velho homem abriu seu livro de preces. Lá estava uma flor de lilás, fresca como se tivesse sido colhida, e Mamãe-Lilás, ou melhor, Recordação, pendia a cabeça, e os dois velhinhos, coroados de ouro, sentavam-se sob o sol quente. Fecharam os olhos e... e... o conto acabou-se.
0 menino, deitado no leito, não sabia mais se ouvira ou sonhara. A chaleira estava sobre a mesa; não havia árvore alguma. 0 velho homem que contara a estória estava para sair. E o fez.
- Como era lindo! - disse o menino.
Mamãe, teria eu ido mesmo até os países quentes?
- Sem duvida alguma - respondeu a mãe. - Quando se bebe duas xícaras cheias de chá de tília, tudo pode acontecer!
E cobriu-o bem, para que ele não apanhasse mais frio.
- Você dormiu bem, enquanto eu brigava com o nosso velho amigo, a fim de saber se era uma estória ou um conto.
- E onde está Mamãe-Lilás? - perguntou o menino.
- Dentro da chaleira - disse a mãe.
E ali ficará.
Hans Christian ANDERSEN nasceu em Odensae, em 2 de abril de 1805, e faleceu em Conpenhague em 1875. Autor de inúmeros contos infanto-juvenis, tarduzido por todo o mundo. Considerado por muitos com o pai da Literatura Infanto-Juvenil. Temos aqui uma seleção de seus melhores contos.

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