terça-feira, 18 de setembro de 2007

Qadós - Hilda Hilst (fragmento)

(in Qadós - SP: Edart, 1973. / Ficções - SP: Quíron, 1977. / Rútilo Nada -
Campinas, SP: Pontes, 1993.)



Difícil de explicar, ia dizendo aos borbotões que essas coisas senhora
são para fazer uma limpeza na minha alma devo começar por aí não sei
se a senhora entende mas o branco é demais importante para começar
as orações e acendendo as velas fica visível para a Excelência que sou
eu mesmo que me acendo, matéria de amor etc. etc. A maioria revirava
os olhos, torcia a boca, umas coçavam os cotovelos, a cintura, diziam:
homem, se queres comida eu entendo mas não tenho, o resto é
confusão, despacha-te. Às vezes davam-me panos pretos, ou
alaranjados ou com listas ou vermelho com florzinhas, nunca o branco,
Excelência, e como último recurso para conseguir os círios eu entrava
numa loja aos solavancos, o olho girassol e gritava: duas velas por favor,
a mãe agoniza, em nome do vosso nosso Deus duas velas para as duas
mãos de mamãe. E saía como o raio, como o cão danado, como Tu
mesmo que te evolas quando Te procuro, ai Sacrossanto por que me
enganaste repetindo: hic est filius meus dilectos, in quo mihi bene
complacui? Nudez e pobreza, humildade e mortificação, muito bem,
Grande Obscuro, e alegria, é o que dizem os textos, humilde e
mortificado tenho sido, mas alegre, mas alegre como posso? Se
continuas a dar voltas à minha frente, estou quase chegando e já não
estás e de repente Te ouço, bramindo: mata o rei, Qadós, o inteiro de
carne e de pergunta, pára de andar atrás de mim como um filho imbecil.
Como queres que eu não pergunte se tudo se faz pergunta? Como
queres o meu ser humilde e mortificado se antes, muito antes do meu
reconhecimento em humildade e mortificação, Tu mesmo e os outros me
obrigam a ser humilde e mortificado? Como queres que eu me proponha
ser alguma coisa se a Tua voracidade Tua garganta de fogo já engoliu o
melhor de mim e cuspiu as escórias, um amontoado de vazios, um nada
vidrilhado, um broche de rameira diante de Ti, dentro de mim? E as
gentes, Máscara do Nojo, como pensas que é possível viver entre as
gentes e Te esquecer? O som sempre rugido da garganta, as mãos
sempre fechadas, se pedes com brandura no meio da noite que te
indiquem o caminho roubam-te tudo, te assaltam, e se não pedes te
perseguem, se ficas parado te empurram mais para frente, pensas que
vais a caminho da água, que todos vão, que mais adiante refrescarás
pelo menos os pés e ali não há nada, apenas se comprimem um
instante, bocejam, grunhem, olham ao redor, depois saem em
disparada. Andei no meio desses loucos, fiz um manto dos retalhos que
me deram, alguns livros embaixo do braço, e se via alguém mais louco
do que os outros, mais aflito, abria um dos livros ao acaso, depois
deixava o vento virar as folhas e aguardava. O vento parou, eis o recado
para o outro: sê fiel a ti mesmo e um dia serás livre. Prendem-me. Uma
série de perguntas: qual é teu nome? Qadós. Qa o quê? Qadós. Qadós
de quê? Isso já é bem difícil. Digo: sempre fui só Qadós. Profissão. Não
tenho não senhor, só procuro e penso. Procura e pensa o quê? Procuro
uma maneira sábia de me pensar. Fora com ele, é louco, não é da nossa
alçada, que se afaste da cidade, que não importune os cidadãos. Sou
quase sempre esse, matéria de vileza e confusão para os outros, para os
Teus olhos um nada que te persegue, um nada que se agarra às tuas
babas, e como é difícil te perseguir, nem o rasto, nem a estria brilhante
(aquela que os caracóis deixam depois da chuva) eu vejo, pois é pois é,
seria fácil para o teu inteiro gosma e fereza, o teu inteiro amoldável, me
dar umas pequeninas alegrias e te mostrares um dia Grande Caracol
baboso aguado brilhante, te mostrares um dia intimidade, vê Cão de
Pedra, agora não sei, fui íntimo para um uma ou dois, nem me lembro,
e a princípio como me trataram bem, cuidado na fala, langor no olhar, a
minha palavra era véu dourado que pouco a pouco pousava,
translúcido, luminosidade delicada, eu Qadós falava e o espaço era
pérola, leite fresco, pistilo, um ou três relinchos para aquecer ainda
mais tanta mornura, sorriam, lábio frouxo encantado, gula de me
possuir inteiro, se era mulher ela me dizia isso mesmo gula de te
possuir inteiro, Qadós, se era homem também, aí eu me escondia, dias
e dias sobre Plotino, outros dias apenas flutuava sobre o verde dos
parques, de longe me seguiam, eu de névoa transfixado, melindre
dissolvência, Qadós O Inteiro Desejado.
(...)
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